Democracia é conceito abstrato no país

Há dúvidas sobre se líderes tribais conseguem entender valores democráticos

BAGDÁ – Perplexidade. Talvez seja a melhor palavra para descrever o que sentem os iraquianos. Depois de duas décadas de submissão a um ditador megalomaníaco e sanguinário, depois de três guerras e três derrotas, a última delas consumada há pouco mais de uma semana, os iraquianos se inteiram agora de que o novo homem forte do país é alguém de que nunca tinham ouvido falar, patrocinado pela mesma superpotência que cortejou o ditador por ela agora derrubado.

O nome do jogo, agora, é democracia, um conceito abstrato e longínquo, que o país nunca colocou em prática em sua longa e tumultuada história. O Iraque foi pego num mau momento para um experimento tão arrojado e uma mudança tão brusca. Sua elite está inteiramente desarticulada: humilhada pelo despotismo de Saddam Hussein e por sua claque de novos ricos; fragmentada pela emigração de centenas de milhares de intelectuais e profissionais liberais; empobrecida por 12 anos de embargo econômico, no qual o trabalho lícito perdeu valor, substituído pelo contrabando e outras atividades mafiosas.

Desde que chegou a Bagdá, na quarta-feira, Ahmed Chalabi, líder da oposição no exílio, tem recebido dezenas de líderes tribais e religiosos, enquanto desenha o complexo mapa da transição política. Todos eles se dizem partidários de um regime democrático. Mas foi precisamente essa rede de lealdades tribais que sustentou um regime tão extravagante como o de Saddam, um mestre na arte de distribuir privilégios e castigos.

“Os líderes tribais não são suficientemente cultos para conceber a democracia”, adverte o jornalista iraquiano Hani Ashur, correspondente em Bagdá dos jornais de língua árabe Al-Quds, em Londres, e Al-Asharq, do Catar. “E os líderes religiosos acreditam que falam em nome de Deus, não aceitam contestação.” Ashur, doutor em literatura árabe, foi de casa em casa nos últimos dias, convidar intelectuais para discutir seu papel nessa transição política.

Segundo ele, o movimento deve reunir cerca de 500 pessoas, que se mantiveram no Iraque nesse período, tentando preservar alguma dignidade, num ambiente em que era perigoso proferir qualquer opinião que desagradasse Saddam. O próprio Ashur foi editor-chefe do jornal do Exército, Al-Qadissiyah, antes de se empregar nos jornais estrangeiros, nos quais também exercia autocensura.

Nos últimos 35 anos de governo do Partido Baath, e em particular desde 1979, quando Saddam assumiu a presidência, não tem existido atividade política fora da esfera de controle do partido e do ditador. Encontrar baathistas aceitáveis parece impossível. “Os baathistas são todos criminosos”, descarta Hamzeh al-Juburi, líder de clã em Graiaat, norte do Bagdá, que na sexta-feira foi falar com Chalabi. “Queremos qualquer iraquiano, seja Chalabi ou outro, desde que escolhido pelos iraquianos.”

Se não restaram líderes políticos no Iraque, a população expressa uma rejeição automática contra os oposicionistas que foram para o exílio, enquanto a maioria dos iraquianos se submetia às agruras das guerras, do embargo e dos caprichos de Saddam. Além do sentimento de que esses iraquianos “de fora” foram de certa forma contaminados pelo colonialismo americano e inglês, há o fato de que a população, privada de imprensa livre, simplesmente nunca ouviu falar neles.

Em conversas preliminares, o grupo de Ashur tem achado que a saída para esse impasse seria o parlamentarismo. “Não se pode querer substituir Saddam por outra figura forte, mas colocar um governante que preste contas constantemente ao Parlamento e seja trocado de quatro em quatro anos”, diz Ashur. Se a chefia do governo por um primeiro-ministro traria maior ou menor estabilidade, é uma questão em aberta.

Os iraquianos têm uma experiência bastante pobre em matéria de Parlamento. No fim do ano passado, o Parlamento iraquiano, um grupo de figuras do Partido Baath leais a Saddam, votou contra a volta dos inspetores de armas da ONU. Dias depois, Saddam aprovou o seu retorno, numa das inúmeras oportunidades para provar que quem mandava era ele.

Um governante que não fizer assim será respeitado pelos iraquianos? Até dissidentes do regime no exílio têm suas dúvidas. Além disso, a relação de causalidade entre a guerra, com suas mortes de civis e danos materiais, e a mudança de regime prejudica o apoio ao novo governo.

“Quero uma indenização de George W. Bush e Tony Blair por terem atacado meu país, impondo uma mudança política da maneira como se fazia no século 17 ou 18”, diz o médico Nuri Bahjat, que não tem nenhum motivo para gostar de Saddam. Filho do comandante da guarda do último rei da dinastia hachemita, Faiçal II, deposto em 1958, Bahjat se aposentou como diretor-geral do Hospital Latifia, depois de 43 anos de trabalho, recebendo menos de US$ 1 por mês, por não estar entre os acólitos de Saddam.

Em entrevista na sexta-feira, Chalabi argumentou que o número de mortos por dia na guerra foi menor do que o de pessoas trucidadas pelo regime diariamente. “A questão não é essa”, diz o engenheiro mecânico Ahmed Mustapha, desempregado desde a imposição das sanções pela ONU, em 1990. “Muitas pessoas ainda vão morrer, nos confrontos que virão entre grupos tribais e religiosos.” Mesmo assim, Mustapha acha que valeu a pena. “Dentro de uns dois anos, as coisas devem melhorar.” Resta à maioria dos iraquianos continuar fazendo o que tem feito nos últimos anos: esperar.

 Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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