Embaixada brasileira é defendida à bala

Com ajuda de dois guardas e fuzis Kalashnikovs, encarregado administrativo afugenta ladrões

BAGDÁ – “Estamos todos bem. A embaixada está intacta. Saímos de mais uma guerra.” As frases fluem de forma telegráfica enquanto o encarregado administrativo da embaixada do Brasil em Bagdá, Awni al-Dayri, faz seu primeiro relato ao Itamaraty depois de três semanas sem contato com o mundo exterior por causa da destruição das torres de telecomunicações pelos bombardeiros americanos. Num telefone via satélite emprestado pelo repórter, Al-Dayri ligou ontem para o ministro Luiz Francisco Braconnot, da Embaixada do Brasil em Amã.

Até então, o Itamaraty não tinha idéia do que havia acontecido com a embaixada brasileira. E as notícias eram boas. Ela foi uma das poucas embaixadas não saqueadas em Bagdá. No início da tarde de quinta-feira, dois guardas particulares de Al-Dayri foram chamá-lo em casa para avisar que os saqueadores haviam chegado à embaixada. Al-Dayri e os dois homens, cada um com um fuzil Kalashnikov, chegaram dando tiros para o alto – no total, 120 disparos. Três homens fugiram em um caminhão estacionado no portão lateral, com o qual pretendiam limpar a embaixada.

No fim, o prejuízo consistiu de quatro aparelhos de ar-condicionado, duas geladeiras velhas e um gerador de eletricidade, levados numa picape antes da chegada do caminhão. Os saqueadores não tiveram tempo de invadir a sala onde estavam o arquivo da embaixada e os objetos de maior valor, como tapetes persas. Chegaram a arrombar a ventanilha da porta de madeira, verificando que, por trás dela, havia uma grade de aço. Provavelmente, deixaram aquele cômodo para mais tarde.

As fardas de dois policiais que vigiavam a embaixada ainda estavam ontem nos colchões em que dormiram numa sala da casa, onde se refugiaram dos bombardeios. Quando os americanos invadiram Bagdá, esses e todos os outros policiais abandonaram as fardas e passaram a andar à paisana.

Ainda não acredito que estou vivo e que não aconteceu nada com minha família”, diz Al-Dayri. “Dos 23 anos em que vivo aqui, este é o primeiro dia em que respiro liberdade.” Encarregado da embaixada desde 1989 – quando o último embaixador brasileiro, Sérgio Mauro Couto, deixou Bagdá -, Al-Dayri conviveu nestes anos todos com a preocupação de não ter nenhuma conversa de teor político pelo telefone, continuamente monitorado pelo serviço secreto iraquiano. “Até dirigir era perigoso, por causa do risco de bater no carro de alguém importante.”

A casa de Al-Dayri era uma das mais mal localizadas, em tempos de guerra. Entre seus vizinhos estão um quartel da Guarda Republicana, a sede da polícia secreta, a torre da empresa estatal de telecomunicações e o Palácio As-Salam, um dos seis que Saddam Hussein tinha em Bagdá. Um complexo de edifícios nas cercanias, para onde tinham sido transferidos os arquivos da presidência, foi simplesmente varrido pelas bombas. “Ninguém sabe quantas pessoas morreram aí”, diz Al-Dayri. As fitas adesivas em forma de xis, para evitar que estilhaços de vidro voassem e pudessem ferir alguém, ainda estão coladas nas janelas da casa de Al-Dayri, mas nada de mais grave ocorreu.

Durante os primeiros dez dias de bombardeios, Al-Dayri conta que ainda era possível sair de dia por algumas horas. Depois disso, com a intensificação dos ataques diurnos, ele e a maioria dos moradores de Bagdá ficaram confinados em casa. Depois da tomada de Bagdá pela coalizão, na quarta-feira, veio a onda de saques, que até hoje mantém a maioria das pessoas comuns em casa.

“Nem depois da Guerra do Golfo vivemos uma situação como essa”, compara Al-Dayri. Os jovens que moram na sua rua, entre eles seus filhos Ghayass, de 21 anos, e Ibrahim, de 19, assumiram a segurança para evitar saques. “Todos tivemos de nos armar.” “Metade desses que estão na rua saiu para saquear ou assaltar”, apontava Al-Dayri, durante uma volta por Bagdá ontem à tarde.

Além disso, as escaramuças entre combatentes leais a Saddam e soldados americanos continuam. “Esta não é a Bagdá que conheço”, estranhava ontem Al-Dayri, olhando para os prédios destruídos e as carcaças de automóveis por toda parte.

Al-Dayri não quis deixar o Iraque antes da guerra – a terceira desde que vive aqui – por causa de suas fortes raízes no país. Casado com a iraquiana Assmaa, com quem tem dois filhos, Al-Dayri, um libanês naturalizado brasileiro, sente-se em casa no Iraque.

Para Assmaa, a tomada de Bagdá pelos americanos foi um presente de aniversário: na quarta-feira, quando a estátua de Saddam foi derrubada na capital, simbolizando a queda do regime, ela completou 50 anos.

Assmaa, no entanto, que há 21 anos não sai do Iraque – não quis sequer tirar passaporte para evitar contato com os funcionários do governo de Saddam -, ainda vive sobressaltada: “Só vou respirar aliviada quando for confirmada a morte de Saddam.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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