Nostalgia de Saddam povoa imaginário sunita

Em desvantagem na política desde 2003, seita de ex-ditador divide-se entre o ‘passado glorioso’ e um futuro não sectário

TIKRIT, Iraque – Há muitas formas de medir o poder de um xeque árabe. Uma delas é o número de poltronas em sua sala de estar, destinadas às reuniões com líderes tribais. A do xeque Munaf al-Nida possui 100 poltronas ao redor do recinto retangular, a cada duas uma mesinha de madeira e um cinzeiro de cristal, tapetes marrons e beges, quatro lustres grandes no teto e seis janelas amplas.

“Soube que vocês foram ao túmulo de Saddam. Gostaram?”, pergunta na entrada o xeque, cujo avô era primo do pai de Saddam. Não há segredos na vila de Oja, a terra natal de Saddam Hussein, na periferia de Tikrit, 140 km ao norte de Bagdá. “É lá que realizamos casamentos e velórios.” O salão de festas e reuniões de Oja tornou-se o mausoléu de Saddam, com seu túmulo, os dos filhos Oday e Qusay e do tio Hassan al-Majid.

Ali se encontra também um curioso relicário dos tempos do ditador, composto de presentes de admiradores, como um painel de 67 fotos de Saddam e um poema escrito por um admirador: “Saddam, és o mais temido, mesmo no túmulo. Sinto o amor que está dentro de ti. Eles te humilharam e decepcionaram. Todos te invejam. Eles odeiam obedecer a moral. Eles te mataram, mas ainda vives em nossas almas.”

Na rua que dá acesso ao mausoléu, a fachada da Escola Secundária Feminina Al-Intisar (A Vitória) exibe um retrato oficial de Saddam, onipresente no Iraque na época de seu regime, e agora uma grande raridade. “Nós o amamos porque é filho daqui, é nosso líder”, explica uma professora da escola. “Toda vez que olhamos para aquele retrato, lembramos como tudo era bom naquela época.”

O tempo parece ter parado em Tikrit, mas não é bem assim. “Allawi teve muito mais votos que eu aqui, mesmo sendo xiita”, sorri Al-Nida, candidato a deputado pelo pequeno partido sunita Movimento Nacional de Patriotas e Poderes Nacionais. O ex-primeiro-ministro Ayad Allawi lidera uma aliança de 11 partidos xiitas e 10 sunitas, todos seculares, que atraiu maciçamente o voto dos sunitas, numa rejeição ao sectarismo, no novo Iraque governado inevitavelmente pela maioria xiita.

Nida está sem aliados nesse novo Iraque. No dia 1º de janeiro de 2004, o coronel americano James Hickey, comandante da Operação Aurora Vermelha, que capturou Saddam perto de Tikrit, mandou prender o xeque, seu pai e seu irmão. Eles passaram 3 meses e 27 dias na famosa prisão de Abu Ghraib, cenário de torturas que levaram a um escândalo e ao julgamento de militares americanos.

“Era inverno e ficamos em tendas”, recorda o xeque, com os olhos marejados. “Passamos muito frio e humilhações.” Ele diz que foi interrogado muitas vezes: “Queriam saber se eu conhecia Osama Bin Laden.” As paredes da sala de Nida ainda guardam as marcas de disparos feitos pelos americanos, em várias batidas realizadas em sua casa. “Confiscaram armas que eu tinha com autorização do governo e roubaram coisas minhas.”

Seu pai foi morto em 2008, num ataque terrorista que ele acredita ter sido cometido por “um grupo de terroristas que recebeu ordens do Irã de matar todos os imames (líderes religiosos), médicos, pilotos e xeques”. No caso de seu pai, ele diz que um parente que comandava a escolta foi comprado por US$ 50 mil. Seis homens participaram do atentado. Quatro foram enforcados. “Os outros dois estão sob proteção da Síria, apesar de pedidos à Interpol de que fossem entregues. Essa para mim é a prova de que foi ordem do Irã”, conclui ele, referindo-se à aliança entre os dois países.

Nida diz que teve uma filial local do movimento Despertar, que combate a presença da Al-Qaeda, mas a desfez quando líderes do movimento lhe pediram para fazer a segurança da rodovia Bagdá-Mosul, que passa em frente à sua casa. Nida recusou-se, porque a rodovia é usada pelos comboios americanos, e ele não deseja colaborar com a ocupação.

“Na época de Saddam era melhor, porque o combustível era barato e podíamos trabalhar nas nossas terras”, dizem os agricultores Shialan al-Jnabi e Abass al-Jnabi. Depois da invasão, o governo iraquiano elevou os preços dos combustíveis ao nível do mercado internacional. O barril de 220 litros de óleo diesel, usado nos geradores que alimentam o sistema de irrigação das fazendas, saltou de US$ 2 para US$ 100, dizem Shialan e Abass, que tiveram de deixar suas terras no vilarejo de Al-Narda e ir trabalhar na construção civil em Tikrit.

Os dois votaram em Allawi: “Esperamos que ele crie empregos. Quaisquer empregos, desde que o salário seja melhor.” Os moradores de Tikrit, assim como o restante dos iraquianos, sabem que Saddam não vai voltar. A esperança de muitos deles está num Iraque não sectário, que crie prosperidade para todos. Assim quem sabe poderão deixar para trás Saddam, a Al-Qaeda, os iranianos e americanos, e olhar para o futuro.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*