Poder de Saddam não tinha limites

Iraquianos encaravam o ditador com misto de ódio, pavor e admiração, por seu poder de decidir seus destinos

Quando Ghayass fazia o pré-primário, em meados dos anos 80, chegou para a mãe e perguntou: ‘Quem devo amar mais, Alá ou Baba (Papai) Saddam?’ Assmaa ficou com receio de responder que o menino devia amar mais a Deus. As escolas ensinavam as crianças a serem mais leais ao ditador do que aos pais. Os casais só falavam abertamente de política em seus quartos. ‘Você deve amá-los igualmente’, respondeu Assmaa, depois de meditar por uns instantes.

Quando contou essa história ao Estado, em abril de 2003, em Bagdá, uma semana depois da queda da estátua de Saddam, que selou a vitória americana, Assmaa disse que só dormiria tranqüila depois que o ditador estivesse morto. Neta do comandante da guarda de Faiçal II (1935-58), o último rei do Iraque, Assmaa, uma integrante típica da elite de Bagdá, não saía do país havia mais de duas décadas, porque tinha medo de ir a uma repartição pública requisitar um passaporte.

Os temores de Assmaa eram corriqueiros nos tempos de Saddam Hussein. Quando passavam na frente de um de seus palácios, muitos cidadãos comuns não olhavam, com medo de isso aborrecer algum agente de segurança. Um desentendimento com um membro do Partido Baath (Renascença), de Saddam, podia ser punido com muito mais rigor do que um assassinato comum, por exemplo.

Riad Mohammed Jassim havia saído cinco dias antes da prisão de Abu Ghraib quando o Estado o encontrou, num grupo de quatro homens, saqueando a Feira Internacional de Bagdá. Jassim foi condenado a três prisões perpétuas por causa de desavenças com militantes do Baath. Já Abdullah Taleb Abdullah pegou uma prisão perpétua por assassinato.

Jassim e Abdullah ergueram as camisetas para mostrar cicatrizes de cortes que haviam feito em si mesmos, pela aflição de ficarem confinados em cubículos sem luz natural nem ar fresco, na prisão que depois ficaria famosa no Ocidente pelas torturas cometidas por militares americanos, mas que na época era o símbolo da repressão do regime. Eles tinham sido soltos pelos soldados da coalizão, que abriram as portas das prisões iraquianas depois da tomada de Bagdá.

Ao longo de 35 anos, os iraquianos aprenderam com Saddam que seu poder – expresso na sua capacidade de decidir o destino dos outros – não conhecia limites. Em 1995, o general Hussein Kamel al-Majid, primo e genro de Saddam, fugiu levando segredos dos programas de armas de destruição em massa, que comandava, e os compartilhou com os inspetores da ONU.

Al-Majid se exilou na Jordânia com seu irmão Saddam (batizado assim em homenagem ao poderoso primo), suas mulheres (filhas do ditador) e filhos. Saddam os atraiu de volta, oferecendo-lhes dinheiro e perdão. Ao voltar, em 1996, Hussein e Saddam foram mortos pelos próprios parentes, em Tikrit, por ordem do ditador.

‘Se ele fez isso com os maridos de suas filhas e pais de seus netos, o que não pode fazer conosco?’, perguntou ao Estado, pouco antes da guerra, um comerciante de 35 anos, explicando por que era impossível contrapor-se ao regime. ‘Ninguém gosta de Saddam, mas ele é forte demais’, completou o comerciante iraquiano, que visitava parentes em Amã.

Em 1988, Udai, o primogênito de Saddam, provocou sua ira, ao matar o seu provador de comida, Kamel Hanna Jajjo, por haver intermediado o aliciamento da amante do pai – mulher de um gerente da Iraqi Airlines, promovido a presidente da estatal depois de cedê-la gentilmente. Espalhou-se a notícia de que Udai fora preso e, enquanto decidia o que fazer com o filho, Saddam teria dito a frase: ‘Se um olho me incomoda, eu o arranco.’

O cunhado de Saddam, Adnan Khayrallah, também seu primo e ministro da Defesa, assumiu as dores da irmã, e começou a queixar-se da falta de discrição do romance. Morreu num ‘acidente’ de helicóptero que, segundo se acredita, foi causado por sabotagem ordenada por Saddam. Adnan, um oficial respeitado, era filho de um tio querido de Saddam, KhayrallahTalfah, que o criou depois que seu pai morreu e inspirou sua carreira política.

Essas e muitas outras histórias eram conhecidas de todos os iraquianos, que encaravam Saddam (literalmente, ‘aquele que confronta’) com um misto de ódio, pavor e admiração. No Café Central, em Amã, ponto de encontro de intelectuais iraquianos exilados, um professor de literatura inglesa disse ao Estado, antes da guerra, em março de 2003: ‘Os iraquianos só apóiam um governo quando ele demonstra força. Assim que sentem que ele está fraco, levantam-se para derrubá-lo.’

Com base nesse raciocínio, sempre que indagados sobre as chances de uma democracia em seu país, os iraquianos atalhavam: ‘Mustahil.’ Impossível. Os americanos preferiram ignorar esse juízo. Finalmente, Saddam está morto. Mas é incerto se Assmaa encontrou a tranqüilidade.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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