Saddam, o que queria ser Deus

Tudo no Iraque deveria ser visto como efeito de um ato volitivo do ditador

BAGDÁ – Quando estava no jardim de infância, há cerca de 15 anos, o filho de Assmaa al-Dayri lhe fez a seguinte pergunta: “Quem devemos amar mais, baba (papai) Saddam ou Deus?” Assmaa teve medo de dizer o que pensava. As escolas ensinavam as crianças iraquianas a serem mais leais ao ditador que a seus pais. “Você deve amar os dois igualmente”, respondeu apenas.

Nesses 24 anos de poder absoluto no Iraque, Saddam Hussein se esforçou por se igualar a Deus. Os iraquianos dificilmente usavam as palavras “governo” ou “Estado”. “Antes da guerra, Saddam distribuiu carros novos para os oficiais do Exército, menos para mim, não entendo por quê”, queixa-se o major Adnan Abdullah. “Saddam me aposentou com menos de US$ 1 por mês”, conta Nuri Bahjat, ex-diretor-geral do Hospital Latifia.

Tudo o que se passava no Iraque devia ser visto como ato volitivo de Saddam. Assim é o Deus islâmico. Em contraste com o Deus judeu ou cristão, que engendrou um universo que a partir daí passou a funcionar segundo as regras de seu Criador, o sol só nasce a cada dia, no islamismo, por decisão específica de Alá.

A imagem de Saddam era – ainda é – onipresente em Bagdá. A cada esquina, nos mais diversos trajes e formas, Saddam fitava os iraquianos. Ele tudo via e sabia. Entretanto, era proibido, aos iraquianos comuns, desenhar seu rosto. Exatamente como o Islã proíbe representar Alá numa imagem.

Como todo deus, Saddam tinha seus templos – 19 palácios, ao todo. Os iraquianos não ousavam sequer olhar para eles, quando passavam em frente. Como locais sagrados, estavam protegidos pelo sentido do tabu. Depois da queda de Saddam, os iraquianos entraram nesses palácios com um sentimento de profanação. Até que os soldados americanos os fecharam outra vez, permitindo apenas a entrada de jornalistas e seus acompanhantes.

No mais novo e mais imponente desses palácios, As-Salam, em Bagdá, um imenso quadrilátero, cada vértice com o rosto de Saddam dominando os quatro pontos cardeais, as paredes são revestidas de gravuras em mármore, com cenas de caças e batalhas, à maneira dos templos erguidos na Antigüidade. Ao fundo, um imenso lago de água potável, desviada da rede de abastecimento, numa cidade com escassez de água. Ali o ditador se distraía alimentando golfinhos.

No seu temperamento drástico, capaz de compensar com exuberante generosidade aqueles que lhe eram leais, e de castigar com crueldade diabólica os que o contrariavam, Saddam se assemelhava ao Deus do Velho Testamento, ou, mais precisamente, aos deuses da mitologia grega.

Há duas semanas, quando as tropas americanas cercavam Bagdá, Saddam mandou chamar Mohammed Abbas Suleiman Al-Majid, chefe do serviço secreto da Guarda Republicana. Segundo relato de um primo de Al-Majid ao Estado, Saddam lhe disse que os generais da Guarda o haviam traído, abandonando as linhas de defesa de Bagdá. “Como você não me contou, então também me traiu”, disse Saddam ao apavorado auxiliar. Em seguida, cortou as orelhas e os braços de Al-Majid. E mandou que seu ajudante de ordens lhe arrancasse os olhos.

A cada situação de contrariedade, Saddam procurou sempre demonstrar que não podia haver limites ao seu apetite para o castigo exemplar. Quando seus genros, Hussein e Saddam Kamel, depois de revelar segredos do programa de armas de destruição maciça, voltaram da Jordânia, atraídos pelas promessas de perdão do sogro, que disse que queria rever as filhas e netos, Saddam ordenou que Ali Hassan al-Majid, tio deles, os matasse na frente das esposas e filhos. Na invasão da casa de Hussein e Saddam Kamel, Al-Majid, conhecido como Ali, o Químico, matou também o próprio irmão, pai dos dois.

Quando Qusay Hussein matou o provador de comida do pai, Djedju, com choques elétricos em sua cabeça, Saddam colocou o filho na cadeia, e proferiu uma frase que os iraquianos jamais esqueceriam: “Se um olho me incomodar, eu o arrancarei.” Traduzindo: ninguém, fossem filhos, genros ou netos, estaria a salvo de seu implacável código de conduta.

Da mesma maneira como queria ver as histórias de seus castigos se espalharem pelo Iraque, Saddam também gostava de ser visto como aquele que sabia recompensar seus benfeitores. O ditador, que tinha predileção por mulheres de meia idade para amantes, apaixonou-se por Balkiis, esposa de Nuraddin al-Saffi, um executivo da Iraqi Airways. E o comunicou a Al-Saffi, que lhe entregou prontamente sua mulher. Al-Saffi foi promovido a presidente da Iraqi Airways e aparentemente os dois homens ficaram contentes.

Por sinal, foi exatamente por causa desse affair que Qusay eletrocutou Djedju: porque o provador de comida do pai, que conhecia e guardava fielmente todos os segredos de Saddam, escondeu o caso dos filhos do ditador. A história de Djedju é emblemática: a proximidade a Saddam, voluntária ou não, era uma desgraça pessoal em si mesma. Nem a lealdade extrema era uma garantia de segurança. Ao contrário, ela podia ser uma sentença de morte.

Aos 23 anos, Latif Yahia, de família de posses, sonhava com uma carreira de profissional liberal. Tinha interrompido os estudos para atuar como oficial na guerra Irã-Iraque, quando, em 1987, foi levado de Basra, onde lutava, até um dos palácios de Saddam em Bagdá. Por causa de sua semelhança com Uday, o filho mais velho de Saddam, fora recrutado pela polícia secreta iraquiana para ser dublê.

Yahia passou por cirurgias plásticas e treinamento e durante quatro anos teve uma vida de simulacro, servindo às necessidades, caprichos e aberrações de Uday. Uma vez, quando tentou consolar Uday depois de uma derrota da seleção iraquiana de futebol, dizendo que em todos os jogos há um perdedor e um vencedor, foi espancado e colocado em cativeiro durante duas semanas, por “insolência”.

Yahia fugiu em março de 1991, aproveitando a confusão que se instalou no regime durante a Guerra do Golfo e, com a ajuda de um jornalista austríaco, contou sua história no livro Ich War Saddams Sohn (Eu Fui Filho de Saddam), lançado em 1994. Até a queda de Saddam, Yahia continuava vivendo como uma sombra, escondendo-se da polícia secreta iraquiana, que chegou perto de matá-lo várias vezes.

Duas semanas depois da queda da estátua de Saddam em Bagdá, os iraquianos começam a buscar palavras para os seus sentimentos em relação a esse homem, que às vezes não tinham coragem de revelar sequer dentro da própria casa.

“Saddam era um filho da puta”, desabafou finalmente o major Adnan, depois de vários dias de convívio com o repórter do Estado, que o contratou como motorista, e só depois de ouvir muitos relatos de pessoas que sofreram como ele.

A frase do major não tem sentido apenas figurado. Sabha, a mãe de Saddam, cujo pai morreu antes que ele nascesse, saciava o apetite dos motoristas de caminhão que faziam a rota Bagdá-Tikrit. Menino, Saddam assistia enquanto a mãe, as pernas tatuadas, segundo contam, entregava-se aos motoristas em sua casa. Quando assumiu a presidência, Saddam mandou fuzilar os motoristas que, segundo ele, tinham sido namorados de sua mãe.

Em compensação, noutro episódio revelador de sua psique atormentada, diretores do serviço secreto foram a seu gabinete um dia para contar que a mãe de um agente se prostituía em Moscou. No dia seguinte, o agente foi repentinamente galgado a membro do Comando Central do Partido Baath. Na conservadora sociedade iraquiana, essas histórias chocam e humilham. “Num certo sentido, Saddam buscou transformar todas as iraquianas em prostitutas”, conclui um estrangeiro que vive no país há mais de 20 anos.

Aos 36 anos, com um filho de 8, Adnan está há vários anos tentando engravidar de novo sua mulher. Enfermeiro do Hospital do Exército, ele fez vários exames para investigar os motivos de sua súbita esterilidade. Só lhe restou uma hipótese: a síndrome da Guerra do Golfo, na qual serviu, e da qual muitos veteranos saíram com queixas de enfermidades difíceis de descrever.

Com exceção da pequena casta de novos ricos que rodeavam Saddam e se locupletaram com o contrabando durante 13 anos de embargo econômico, circulando de Ferraris, Mercedes, BMWs e Porsches do ano, num país de uma classe média maltrapilha e faminta, todo iraquiano tem uma história para contar, sobre como as decisões arbitrárias de Saddam afetaram sua vida, seja pelas guerras, pelas sanções ou pela brutalidade direta do regime.

Entretanto, o controle estrito da informação pela polícia secreta e pela imprensa fazia do Iraque um reino da fantasia, no qual todos se esforçavam para simular contentamento. Havia cinco jornais – dois do governo, um do Partido Baath, um do Exército e um de Uday – e três emissoras de TV – todas estatais, nas quais Saddam passava horas, no horário nobre, divagando sobre os mais diversos temas, num monólogo enlouquecedor.

Enquanto os iraquianos fantasiam o que fazer com Saddam, Assmaa tem uma sugestão: colocá-lo numa cela, na frente da TV, e obrigá-lo a assistir a si mesmo, como ele fez com os iraquianos durante 24 anos.

 Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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