Tiros, explosões: Bagdá ainda luta

Situação está longe de se normalizar e saques só diminuem porque já não há muito para saquear

BAGDÁ – Num sinal de que o controle sobre Bagdá está longe de consumado, quatro dias depois da derrubada da estátua de Saddam Hussein no centro da capital, intensos disparos de fuzis, rajadas de metralhadoras e fogo de artilharia foram ouvidos ontem à noite na cidade. Os disparos e explosões começaram por volta de 19 horas (12 horas em Brasília), e seguiram noite adentro. A intensificação dos disparos na parte oeste da cidade levou os carros a fugirem em direção ao centro.

Os moradores se recolheram às suas casas e a cidade de mais de 5 milhões de habitantes ficou inteiramente paralisada, enquanto os disparos e explosões ganhavam ritmo cada vez maior. Bagdá está sob toque de recolher, do anoitecer ao amanhecer.

Os saques, que infernizaram a cidade desde quarta-feira, arrefeceram – por absoluta falta do que saquear. Ontem, ainda se viam algumas famílias carregando pelas ruas sofás, cadeiras e qualquer coisa que pudesse ter alguma utilidade, arrancadas, sobretudo, de repartições públicas. Muitos estão munidos de carrinhos de madeira com rodas, para facilitar o transporte.

Dezenas de iraquianos se aglomeraram, ontem, na frente do Hotel Palestina, onde se concentra a imprensa estrangeira, rodeado por fuzileiros navais americanos, para pedir que as forças da coalizão se engajem na manutenção da ordem. “Eles protegem os poços de petróleo, mas dizem que não podem proteger as pessoas”, dizia um cartaz. Os manifestantes gritavam palavras de ordem, exigindo paz e segurança.

Os militares americanos dizem que gostariam de poder ajudar mais a população, mas simplesmente não têm efetivos suficientes para guarnecer as posições conquistadas até o momento, enfrentar os focos da resistência iraquiana, avançar sobre o último reduto de Saddam – sua cidade natal, Tikrit, a noroeste de Bagdá – e ainda fazer o papel de polícia.

O governo americano anunciou no sábado o envio, nos próximos dias, de 1.200 policiais militares ao Iraque. A coalizão tem recrutado também policiais iraquianos, sobretudo da reserva, para retomarem suas atividades e garantir o mínimo de segurança. Ontem, pela primeira vez, depois de revistar 25 pessoas, militares americanos detiveram quatro ladrões que haviam saqueado um banco perto do Rio Tigre.

Em muitos casos, a colaboração se dá de maneira praticamente espontânea. Dois policiais à paisana apareceram ontem à tarde para escoltar um comboio de 12 carros de jornalistas estrangeiros, vindo da Jordânia, depois que eles pararam na estrada que liga Amã a Bagdá, sem saber se seguiam ou voltavam, diante das notícias de assaltos, por homens encapuzados e armados com fuzis e metralhadoras. Dirigindo um carro de passeio, eles tomaram a dianteira do comboio que havia parado na estrada e seguiram por cerca de um quilômetro, até deixar passar os jornalistas, dizendo que os bandidos tinham ido embora.

Nos 551 quilômetros da estrada de duas pistas, entre a fronteira e Bagdá, há um grande vácuo de autoridades. Entre o primeiro posto de controle americano, que fica na fronteira, e o outro, já na entrada noroeste da capital. Mas os cidadãos comuns trafegam com razoável tranqüilidade.

São os jornalistas estrangeiros, com seus dólares e equipamentos eletrônicos, que interessam aos ladrões. Um cinegrafista sul-africano, da Associated Press, que voltava de Bagdá a Amã, ficou só com a roupa do corpo, ao passar sob um viaduto, temporariamente tomado por bandidos armados de metralhadoras.

Bagdá segue sem eletricidade, conseqüentemente sem água, que é tratada e bombeada por máquinas movidas à energia elétrica, e sem telefone, por causa dos bombardeios da coalizão. A maioria das lojas está fechada e as ruas de Bagdá estão semidesertas. Os iraquianos enfrentam todas essas agruras com notável espírito esportivo, acenando e abordando nas ruas, por curiosidade, os jornalistas ocidentais.

Mas a apreensão com os bombardeios, que duraram três semanas, deu lugar a outro tipo de preocupação: o que os americanos pretendem fazer com o país?

Vestido de uniforme de fuzileiro naval, o iraquiano Abdul (que não quis dar o sobrenome), de 46 anos, recrutado pela unidade de Assuntos Civis das Forças Armadas Americanas, procurava, ontem, atenuar as inquietações dos iraquianos, do outro lado do rolo de arame farpado que impede a entrada no Hotel Palestina de pessoas sem credencial de imprensa.

“Saddam, vá embora. Vamos pisá-lo com nossos sapatos”, gritou Abdul em árabe, apoiado por alguns da platéia de dezenas de pessoas. Ele garantiu aos compatriotas que quem vai governar o Iraque são os iraquianos, e que os americanos ficarão só o tempo que for necessário.

Lá dentro, no hall do Hotel Palestina, essa era a reivindicação que fazia, ontem à tarde, o empresário iraquiano Sattam al-Gaaod. O empresário, que tem negócios em vários países árabes, disse que depois de derrubar Saddam a coalizão deve sair o mais rápido do país. “Para organizar eleições, leva no máximo seis meses, mas não dois anos”, disse Al-Gaaod, para quem os EUA e seus aliados “estão destruindo completamente a identidade, a riqueza e a civilização do país, e roubando seu petróleo”. E estariam fazendo isso para atender aos interesses de Israel.

Al-Gaaod disse também que os iraquianos não vão respeitar “uma oposição fabricada artificialmente no exterior”, numa referência aos líderes no exílio, patrocinados pelos EUA, a começar por Ahmed Chalabi, que articula, em Nasiriya, no sul do país, a formação de um governo de união nacional. Para nós, um governo composto por esses grupos seria como ter os americanos governando o Iraque”, sentenciou Al-Gaaod.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*