Xiita descreve luta contra Estado Islâmico

Com fuzil numa mão, funcionário público fala ao “Estado” pelo celular

ERBIL – Há dois meses e meio, os moradores de Amerli, uma cidade de cerca de 20 mil habitantes, 170 km ao norte de Bagdá, vêm resistindo ao cerco do Estado Islâmico (EI). A cidade é habitada por turcomanos xiitas. O risco de genocídio de uma minoria, como o que pairava sobre os yazidis, leva os Estados Unidos a estudar uma operação de resgate, envolvendo bombardeios contra posições do EI e entrega de água e comida por aviões.

Enquanto segurava seu fuzil na linha de frente, entre 23h e 23h40 de quarta-feira, Abdullah Tayyaw, um funcionário público de 46 anos, casado, pai de dois filhos e duas filhas, deu este raro depoimento ao Estado, com um celular cuja bateria foi carregada por um gerador a querosene:

“Estou na linha de frente norte de Amerli. O EI está a 3 km daqui. Em outras linhas de defesa, o EI está a menos de 2 km. O EI ocupa 36 vilas ao redor de Amerli. No início, algumas pessoas conseguiram fugir, talvez umas 500. Há quase três meses, estamos totalmente cercados. Não se pode sair nem entrar na cidade.

Minha família toda continua em Amerli. Na cidade faltam alimentos, medicamentos e material hospitalar. Não temos gasolina nem óleo diesel. Por isso não há coleta de lixo. Andamos a pé ou de bicicleta. Estamos sem verduras desde o dia 16 de junho e sem eletricidade desde 16 de julho. Temos pequenos geradores, que só ligamos para coisas importantes, com o querosene que estocamos. Cavamos poços e bebemos a água, que é salobra, cheia de resíduos e causa diarreia, infecções estomacais e espasmos. Colhemos trigo e fazemos pão em casa, ajudando uns aos outros. Todo o restante da comida é despejado de helicópteros do governo iraquiano.

O EI dispara contra o helicóptero todas as vezes, com metralhadoras, granadas de morteiro e artilharia. O último helicóptero veio há uma semana. É muito pouco o que eles trazem. A comida é distribuída de acordo com o número de pessoas de cada família. Para cada 40 pessoas, uma lata de extrato de tomate. Cada pessoa recebe 120 gramas de arroz. Para cada 20, um pote de queijo. Não temos leite em pó para os bebês.

O governo ajuda a resgatar os feridos e os doentes para hospitais em Bagdá.

Todos os homens de Amerli estão lutando contra o EI, ao lado dos policiais e das milícias tribais. Não nos falta munição. O governo tem mandado, assim como armas.

O primeiro confronto com o EI foi na noite de 16 para 17 de julho. Durou 12 horas. Matamos 300 combatentes do EI, e entre nós só tivemos feridos. A situação neste momento está calma. O segundo e último confronto foi no dia 3 e também durou 12 horas. Um policial morreu e oito pessoas ficaram feridas. Matamos oito combatentes deles, queimamos um tanque, um Humvee (blindado americano confiscado pelo EI em Mossul) e outro blindado. Confiscamos três Humvees.

Um destacamento do Exército iraquiano, que se retirou de Kirkuk, e a Assaeb (milícia xiita) estão nos dando cobertura. Não tenho ideia de quantos homens eles são. O Hezbollah (milícia xiita libanesa patrocinada pelo Irã) também está nos ajudando. Os peshmergas (soldados curdos) estão longe daqui, não tivemos ajuda deles.

O EI tentou forçar a entrada em Amerli com tanques que eles confiscaram do Exército iraquiano. Os bombardeios de aviões iraquianos nos ajudaram muito.

Quase todos os integrantes do EI são iraquianos. Ouvimos quatro ou cinco estrangeiros. Muitos são das vilas ao redor, que se juntaram ao EI. Nossos vizinhos (sunitas) não resistiram ao EI, que está usando as vilas deles como bases. Nunca tínhamos tido problemas com nossos vizinhos (sunitas). Pelo contrário, as relações eram muito boas. Acredito que não voltará a ser como era antes.

Em cada casa há uma arma, e mesmo as mulheres sabem manejá-las. Tenho uma filha de 17 e outra de 15 anos, um filho de 13 e outro de 8. Peguei em armas porque fiquei com medo de os sequestrarem. Passo as noites na linha de frente e descanso de dia. Foi difícil no início, mas minha família se acostumou.

Temos boas armas e a ajuda da polícia e do Exército. Podemos resistir. Esperamos que o cerco acabe em poucos dias.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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