‘Ficar quieto iria contra a natureza humana’

Porta-voz do Hamas defende os atentados suicidas contra a ocupação israelense

GAZA – Ao contrário da Cisjordânia, onde é preciso esgueirar-se por vielas sombrias para um encontro sigiloso com um militante anônimo do Hamas, nesses tempos de reocupação israelense, em Gaza o grupo islâmico tem domicílio fixo: seu escritório fica no sexto andar de um prédio comercial da Rua Al-Wahda ( “A União”), no centro da cidade.

Não que o Hamas, o inimigo público número 1 de Israel, leve uma vida rósea na Faixa de Gaza, um “formigueiro humano” onde funciona de facto o Estado palestino, abrigando 1,3 milhão dos 3,5 milhões de palestinos que vivem nos territórios e em Jerusalém Oriental. Israel decapitou o Hamas este ano em dois ataques com mísseis disparados de helicópteros, fulminando seu líder espiritural, o xeque Ahmed Yassin, em março, e seu sucessor, Abdel Aziz al-Rantisi, no mês seguinte. Desde então, o Hamas tomou a providência de não divulgar o nome de seu líder, embora alegue tê-lo escolhido secretamente.

A face pública do grupo passou a ser Mushir al-Masri, um jovem esguio de 28 anos, barba densa porém aparada, trajando roupas ocidentais. Nesta entrevista exclusiva ao Estado, o porta-voz explica a posição política do Hamas pós-Yasser Arafat, apoiando um governo de união nacional mas esquivando-se da eleição presidencial; expõe a hesitação do movimento de resistência de se converter em partido político; condena o processo de paz; critica discretamente a Al-Qaeda mas defende com cartesiana frieza os atentados suicidas.

“A estratégia de todos os palestinos deve ser a resistência” diz Al-Masri. “Ficar quieto iria contra a natureza humana.” Seu otimismo é messiânico: “Definitivamente nossa vitória está a caminho. O Alcorão nos diz isso.”

O Hamas apoiaria um governo palestino de coalizão?

É chegada a hora da coalizão de todas as forças que apoiam a causa palestina. Deveria ser formado um governo interino para estabelecer uma administração que represente todos os palestinos.

O senhor se refere à eleição de um presidente interino?

Não. A questão do presidente é diferente. Já vínhamos discutindo um governo de coalizão antes do falecimento de Arafat. Agora, no entanto, está claro que a Autoridade Palestina não tem intenção de realizar eleições para o Conselho Nacional Palestino, que formaria o governo de coalizão. Isso vai ficar para o futuro.

O Hamas apoiará o presidente que for eleito no dia 9 de janeiro?

Sim.

Mesmo que ele condene os atentados suicidas?

A resistência contra a ocupação da Palestina – não só pelo Hamas, mas por todos os palestinos – é legítima. Qualquer um que condene a resistência não está condenando apenas o Hamas, mas toda a causa palestina.

Os atentados suicidas transformam os israelenses em vítimas perante a opinião pública mundial. Isso não é um erro político?

Os israelenses destroem toda a infra-estrutura palestina, derrubam casas em terra árabe, matam intencionalmente nossas mulheres, velhos e crianças, como fizeram com a menina Iman al-Hams, de 13 anos, morta com 15 tiros disparados por um soldado israelense (dia 5 de outubro, no campo de refugiados de Rafah, na Faixa de Gaza). Israel dispõe de uma grande máquina de guerra. Como você imagina a reação de um palestino honrado? Ficar quieto iria contra a natureza humana.

Mas uma criança judia num ônibus não tem culpa disso.

O mundo inteiro precisa entender a equação do conflito palestino-israelense. O problema mais importante – aliás, o único problema – está na ocupação, não no direito legítimo do povo de resistir a ela. Se a ocupação terminar, a resistência acabará. Assim como já fez no passado, o Hamas pode se comprometer a deixar as pessoas inocentes de fora do conflito. Mas quem garante que Israel fará o mesmo? O Hamas cumpriu esse compromisso durante o cessar-fogo (em 2003). E o que Israel fez? Matou o doutor Ismail Abu Shanab (um dos cinco principais líderes do Hamas). Israel sempre procurou criar desordem dentro da comunidade palestina.

O tiroteio de domingo entre milicianos e seguranças palestinos foi um mau presságio para a unidade dos palestinos?

O incidente, condenado pelo Hamas, é um mau sinal sobre a unidade nacional, que estava num clima muito bom depois do falecimento de Arafat. O incidente reflete as desvantagens das últimas decisões tomadas pela Autoridade Palestina, que abriram caminho para a disputa de poder no interior da Fatah (a facção palestina dominante). É por isso que o Hamas faz um apelo pela verdadeira união entre os palestinos.

O Hamas participará de eventuais eleições municipais e para o Parlamento?

De eleições locais, com certeza. O Hamas fez uma grande campanha em favor do registro de eleitores. Já com relação ao Parlamento, nossa posição ainda não está clara. A diferença é que as atividades locais permitem prover serviços para os palestinos. O Hamas não é apenas um movimento militar e político, mas também social, que serve ao povo palestino em todos os aspectos. Por outro lado, não queremos participar de nada que tenha a moldura de Oslo (acordos de paz firmados com Israel em 1993 e 94).

Por que não?

A estratégia de todos os palestinos deve ser a resistência. Os acordos de Oslo não trouxeram nenhum resultado positivo para os palestinos.

Qual é a moldura de vocês? O retorno de Israel às fronteiras antes de 1967 (quando ocupou Jerusalém Oriental, Cisjordânia e Faixa de Gaza)?

Afirmamos nosso direito histórico e religioso às fronteiras da Palestina de 1948 (desenhadas pelas Nações Unidas). Ao mesmo tempo, se houver uma retirada de todo o território árabe, declararemos um cessar-fogo duradouro.

Por que vocês não reconhecem o Estado de Israel?

Como posso reconhecer aquele que me expulsa de minha terra e mata meus filhos?

É verdade que o Hamas foi criado com ajuda de Israel, para se opor à Fatah?

Se o Hamas foi criado com ajuda de Israel, então estamos orgulhosos de ele ter-se voltado contra seu criador. Isso quer dizer que Israel criou o que chama de “terrorismo”. Definitivamente não é verdade. O Hamas é um Movimento de Resistência Islâmica (Harakat al-Muqawamah al-Islamiyya, da sigla em árabe).

Vocês têm alguma ligação com a Al-Qaeda?

Definitivamente, não. O xeque Yassin sempre negou essa ligação. Há diferenças estratégicas e ideológicas entre os dois grupos. O objetivo do Hamas é liberar a terra da Palestina. Nosso único inimigo é Israel. Já a Al-Qaeda – não pretendo falar em nome deles, mas eles têm muitos inimigos. Do ponto de vista ideológico, o Hamas possui uma ideologia islâmica balanceada.

Em que sentido?

Quero dizer que nossa intenção é atingir apenas nosso inimigo. Estamos proibidos de matar outros muçulmanos ou qualquer um que não esteja matando os palestinos.

Diferentemente do que ocorreu no 11 de Setembro?

Sim.

Vocês recebem ajuda de fora?

O povo palestino tem adotado o Hamas, e o tem encorajado. O mínimo que os povos livres do mundo podem fazer, como um tributo à resistência, é apoiar o Hamas, e assim têm feito.

Vocês trabalham em cooperação com a Jihad Islâmica?

Com certeza. O Hamas e a Jihad Islâmica têm o mesmo objetivo. As relações entre o Hamas e todas as organizações palestinas são muito fluidas.

Pelo menos para o público externo, Arafat condenava os atentados suicidas.

Não havia nenhum conflito pessoal entre nós e Arafat. Havia diferenças de plataforma política. Divergências entre facções políticas são naturais em qualquer lugar do mundo.

Vocês almejam um regime islâmico na Palestina?

Achamos que a prioridade agora é liberar a Palestina. O Hamas não almeja a cadeira de presidente da Autoridade Palestina.

Vocês acreditam que vão vencer Israel?

Definitivamente nossa vitória está a caminho. O Alcorão nos diz isso. Quando e como, ninguém sabe. A injustiça não durará muito. Muitos impérios do mundo já acabaram.

 Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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