Hamas abre os porões do Fatah

Buscando provar ‘superioridade moral’ do grupo, capitão mostra celas fétidas e diz que casos de presos serão revistos

GAZA – O capitão Hassan al-Sumassi manda os dez presos se alinharem em duas filas no pátio. Vai apontando um por um: “Esse matou; esse roubou e se envolveu com drogas; esse é ladrão; esse é cúmplice de assassinato; esse é colaboracionista de Israel; esse é homossexual e também usa drogas; esse também foi acusado de colaboracionista, mas nega.” Al-Sumassi resume: “Aqui, você tem todos os tipos de crimes.”

Todos os presos do complexo de Al-Saraya, quartel-general da Força Nacional palestina, foram soltos durante o confronto entre o Fatah, que o controlava, e o Hamas, que o tomou no dia 14, selando a conquista da Faixa de Gaza. Segundo o Hamas, foi o Fatah que abriu as celas, para que o a força invasora disparasse contra os presos em fuga. Segundo o Fatah, foi o Hamas que os soltou.

O fato é que dez deles voltaram, ou porque são inocentes e querem limpar sua ficha ou porque têm medo de represálias das famílias de suas vítimas. O capitão faz questão de mostrá-los ao repórter do Estado, para provar a superioridade moral do Hamas sobre o Fatah. “Agora, estamos sendo bem tratados”, testemunharam os presos, sob o olhar do capitão. “Comemos hoje carne e arroz, a mesma comida que os carcereiros. Na época do Fatah, éramos tratados como animais.”

Al-Sumassi diz que, antes de fugirem, os homens do Fatah queimaram todos os arquivos e destruíram os computadores, de maneira que não se sabe quantos presos havia, seus nomes e os crimes que cometeram. Mas a Justiça vai agora revisar cada caso, promete. Num tour pelo Al-Saraya, o capitão se detém no cadafalso da forca: “Se precisar, vamos usá-la.” E faz questão de mostrar os cinco cubículos fétidos e escuros reservados para militantes do Hamas. “Veja como se sente aí dentro”, diz o capitão, fechando por uns instantes a pesada porta de ferro. A sensação é a de ter sido enterrado vivo.

“Aqui, as famílias pagavam 50 shekels (US$ 12,50) para ficar mais 15 minutos na visita, e os prisioneiros compravam cigarros dos carcereiros por 15 shekels, quando lá fora custam 7”, conta Al-Sumassi. “O Hamas não faz essas coisas.”

Essa suposta superioridade moral do grupo fundamentalista sobre a corrente secular nacionalista é talvez o principal trunfo do Hamas para consolidar seu poder sobre a Faixa de Gaza e, quem sabe, num futuro não muito distante, também sobre a Cisjordânia, onde conta com milhares de militantes e centenas de milhares de simpatizantes.

“O Hamas tem uma ideologia, quer você goste dela ou não”, diz uma jornalista palestina em Gaza. “O Fatah não tem ideologia.” Desde sua fundação, no fim da década de 1950, pelo líder palestino Yasser Arafat, morto em 2004, o Fatah representou a aspiração a um Estado laico. Seu auge foram os acordos de Oslo, de 1993, depois dos quais Arafat instalou a Autoridade Palestina, primeiro em Gaza e Jericó, depois nas demais cidades da Faixa de Gaza.

Mas as evidências de corrupção e mau uso do dinheiro recebido da comunidade internacional (entre 1994 e 2002, foram US$ 6,5 bilhões, segundo o economista Omar Shaban Ismail), combinadas com o fracasso das negociações sobre o status final de Jerusalém e do Estado palestino, esgotaram a paciência dos palestinos, que encontraram sentido nas visões radicais do Hamas.

Com a divisão entre o Fatah na Cisjordânia e o Hamas na Faixa de Gaza, a comunidade internacional e Israel dão continuidade a sua estratégia, premiando o primeiro com ajuda financeira e repasse da arrecadação de impostos e punindo o segundo com a asfixia econômica e o isolamento comercial e diplomático. Ninguém nos territórios palestinos acredita que isso possa dar resultados, mas há distintas visões sobre a moralidade dessa conduta.

“A Faixa de Gaza vai continuar sob punição coletiva e, quer saber? Ela merece”, desabafa o gerente palestino de uma organização não-governamental dedicada a capacitação profissional, sustentada com ajuda estrangeira, referindo-se ao apoio popular ao Hamas. “Não tenho nenhum motivo para gostar do Fatah. Sua corrupção e nepotismo mataram meu pai de desgosto”, diz o palestino, cujo pai, um profissional bem-sucedido no Golfo Pérsico, voltou para Gaza depois do estabelecimento da Autoridade Palestina. Não conseguiu trabalho, por não pertencer ao Fatah, e acabou morrendo de enfarte.

“Não queremos mais saber de lições do Ocidente”, diz, por sua vez, uma cidadã árabe-israelense (embora não goste do rótulo), cientista política pela Universidade de Haifa. “Queriam que tivéssemos democracia. Quando a maioria elegeu o Hamas, rejeitaram a vontade do povo.” Ela acha que o crescimento do Hamas é conseqüência natural da ocupação israelense. “Se você torna a vida insuportável, não pode depois se surpreender porque as pessoas preferem a morte”, diz ela, referindo-se aos atentados suicidas patrocinados pelo Hamas.

Já o diretor-geral da TV Palestina, Abdel Salam Abu Nada, acha que o Hamas deveria ser banido como partido pela lei palestina, por misturar religião com política. “O objetivo deles não é um Estado palestino, mas um Estado islâmico”, afirma o diretor da TV estatal, que fugiu de Gaza para Ramallah, junto com outras 30 pessoas ligadas ao Fatah, depois da vitória militar do Hamas, há duas semanas. “Se quiséssemos fazer isso, poderíamos ter feito por meio do Parlamento, no qual temos maioria”, rebateu o porta-voz do Hamas, Sami Abu Zuhri, em entrevista ao Estado.

Seja como for, para a maioria dos analistas palestinos, o Hamas se soma ao Iraque e ao Líbano como mais uma desconcertante prova do fracasso das políticas dos Estados Unidos – e, em alguma medida, da Europa – para o Oriente Médio. Numa clara inversão de valores, o Ocidente se vê obrigado a apoiar ditaduras como as do Egito, da Jordânia e do Golfo, onde provavelmente a democracia levaria ao poder os fundamentalistas islâmicos, como ocorreu com o Hamas há um ano e meio.

Em contrapartida, o Hamas representa mais um sinal da projeção do Irã – que também está por trás do Hezbollah, no Líbano, e de milícias xiitas no Iraque. Para enfrentar esse difícil cenário, os Estados Unidos e Israel virão agora com mais do mesmo, apoiando o Fatah e alienando o Hamas. Pode não haver alternativa. Mas nem por isso parece animador.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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