Hamas abre prédios do Fatah aos saqueadores

Em Gaza, palestinos temem que grupo imponha a Sharia no território e mulheres saem às ruas de véu

RAMALLAH – Os disparos dos fuzis-metralhadoras continuaram a soar estridentemente ontem na Cidade de Gaza, não mais em ataques do Hamas aos redutos da Fatah, mas na celebração da vitória, que coincidiu com o dia do descanso semanal e de orações dos muçulmanos. Milhares de militantes fundamentalistas saíram às ruas, empunhando enormes bandeiras verdes da organização islâmica, e exibindo carros blindados tomados da Fatah, presumivelmente adquiridos com dinheiro americano.

A repentina conquista da Faixa de Gaza, concluída em apenas cinco dias na madrugada de ontem com a tomada da sede da presidência, encheu de temores e incertezas as pessoas comuns. Um jornalista palestino que pediu para não ser identificado contou ao Estado, pelo telefone, que as mulheres estavam com receio de sair nas ruas sem a cabeça coberta pelo véu islâmico – uma situação nova entre os palestinos, um dos povos mais laicos e liberais do mundo muçulmano.

“Ninguém tem dúvida de que o Hamas vai passar por cima dos nossos valores liberais e impor a lei islâmica”, lamentou o jornalista, de 28 anos. “Por favor, consiga para mim um visto para o Brasil.” Enquanto falava com o Estado, o jornalista participava do funeral de uma vítima do Hamas. Segundo ele, o homem não pertencia à Fatah, mas teve os olhos e o estômago arrancados com uma faca, depois de morto, e sinais indecifráveis riscados em sua pele.

Numa cena que lembra o Iraque depois da queda de Saddam Hussein, os militantes do Hamas abriram os escritórios do governo palestino antes ocupados pela Fatah para a população saquear. Retratos do presidente Mahmud Abbas e de seu antecessor, o líder palestino Yasser Arafat, fundador da Fatah, foram jogados no chão. Diante das câmeras de TV, um militante apontou um fuzil para o rosto de Abbas na foto. Os militantes levaram carros e armas e os saqueadores, tudo o que pudessem carregar.

No gabinete do presidente Mahmud Abbas, um militante mascarado pegou o telefone e brincou: “Alô? Condoleezza Rice?”, referindo-se à secretária de Estado americana. “Agora você vai ter que lidar comigo.” O Hamas acusa Abbas, um líder moderado que defende negociações de paz com Israel, de receber ordens do governo americano.

Além da imposição estrita da Sharia (código de conduta islâmica), os moradores de Gaza se preocupam com a situação econômica do território. Israel se recusa a repassar ao Hamas a receita de impostos que cabe aos palestinos, e a ajuda dos Estados Unidos e da União Européia seguiria cortada para Gaza, enquanto fluiria para um governo da Fatah.

Desde o início dos conflitos, as fronteiras de Gaza com o Egito e com Israel estão fechadas. Mesmo tendo retirado os colonos judeus da Faixa de Gaza em 2005, Israel mantém mobilização militar do seu lado da fronteira, por causa dos ataques com foguetes que o Hamas lança contra a cidade israelense de Sderot. Os funcionários das agências humanitárias pararam de trabalhar, depois que alguns colegas foram alvejados e os combatentes invadiram hospitais. Segundo as agências de notícias, médicos informaram que três pessoas foram mortas ontem a tiros, elevando para mais de cem o número total desde domingo na Faixa de Gaza.

Na Cisjordânia, continuou ontem o acerto de contas de militantes da Fatah contra o Hamas. Escritórios do grupo fundamentalista foram destruídos em Nablus, como já tinha acontecido em Ramallah, onde homens encapuzados patrulhavam ontem as ruas. A Fatah faz questão de demonstrar força na Cisjordânia. Até por causa da presença militar israelense, o Hamas tem uma atuação discreta na Cisjordânia e, nesses dias, seus militantes, embora também numerosos, sumiram de vista.

O motorista palestino com placas de Jerusalém que levou o repórter do Estado para a Cisjordânia brincou que agora já não sabia mais o que usar para garantir sua segurança: o keffieh (longo lenço de cabeça) quadriculado preto e branco, identificado com a Fatah, já não é mais garantia de proteção. “Vou andar com uma bandeira da Palestina e outra do Hamas no carro”, brincou, amargamente.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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