O último golpe de mestre de Sharon

Kadima assume cobiçado centro político israelense e, apesar do derrame do fundador, é franco favorito em eleição

JERUSALÉM – Em sua autobiografia Guerreiro, Ariel Sharon conta como teve a idéia de criar um partido. No início de 1973, logo depois que entrou para a reserva, aos 45 anos, como o maior comandante de campo de Israel, Sharon dirigia o trator em sua fazenda no Neguev e pensava no que faria da vida a partir dali. Para estimulá-lo, tinha de ser algo que fizesse diferença, assim como tinha sido sua brilhante carreira militar até ali, de herói nas guerras de 1948 e 1956 e grande comandante da divisão de tanques da guerra de 1967 (a de outubro de 1973, quando seria reconvocado, ainda estava por vir).

Sharon começou então a pensar sobre o cenário político de Israel, engessado pelo domínio do Partido Trabalhista antes mesmo da criação do Estado, desde os tempos da Agência Judaica, que organizou a imigração. A oposição fragmentária de uma dezena de partidos pequenos de oposição, incluindo o Herut, do proeminente Menachem Begin, que se digladiavam entre si, mantinha aquele domínio incontestável. Sharon poderia se candidatar a uma cadeira de deputado, que ganharia facilmente com sua reputação de soldado. Mas era pouco para estimulá-lo.

Ele pensou então que era hora de criar um novo partido, a partir de uma coalizão daqueles partidos pequenos, para fazer frente aos trabalhistas, cuja inspiração socialista já fazia vergar a capacidade de financiamento do Estado. Mas, como um neófito na política poderia introduzir uma idéia dessas entre políticos profissionais da envergadura de um Beguin?

Sharon teve uma idéia, inspirado num hábito da época entre generais de alto perfil quando davam baixa: chamar para uma entrevista coletiva. “Isso lançaria a idéia para o público de uma forma mais dramática”, recorda no livro, publicado em 1989. “Se atraísse alguma atenção da mídia ou apoio popular, eu ficaria então numa posição forte para abordar Beguin e os outros.” Com o dinheiro da venda de duas toneladas de feno, Sharon alugou um salão no Edifício da Imprensa de Bet Sokolov, em Tel-Aviv, e lançou a sua proposta.

Depois de meses de confabulações com os políticos, nascia o Likud, que passaria a dividir o poder com os trabalhistas.

Mais de 30 anos depois, Sharon, agora primeiro-ministro de Israel, tentaria o truque mais uma vez. Sintonizado, como três décadas antes, com os sentimentos dos israelenses comuns e da mídia, Sharon rompeu o impasse em que Israel estava mergulhado. De um lado, a disposição trabalhista de negociar a paz e oferecer concessões a uma liderança palestina que não queria ou não podia conter a violência. De outro, o Likud, representado até então pelo próprio Sharon e, sobretudo, pelo seu atual líder, Binyamin Netanyahu, mais inclinado em impor suas condições aos palestinos e garantir a segurança de Israel a ferro e fogo. As duas opções foram reiteradamente testadas, e fracassaram, com Israel cada vez mais vulnerável ao terrorismo islâmico, o que a ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, com suas fronteiras porosas, só ajudava a agravar.

Num rompante que lembrou suas manobras surpreendentes no Deserto do Sinai, Sharon resolveu retirar os soldados e os 8.500 colonos judeus da Faixa de Gaza, passando como uma divisão de tanques sobre as resistências de seu Likud. Isso foi em agosto. Em novembro, tolhido não tanto pelas resistências internas de seu partido, como pela intuição de que havia um espaço, no centro do espectro político, a ser ocupado, Sharon criou o Kadima, que traz consigo um significado, afinal, militar: Adiante.

Antes de seu derrame, no dia 4, as pesquisas já conferiam ao novo Kadima – que atraiu um ícone do trabalhismo, Shimon Peres – a liderança nas eleições de 28 de março, com um quarto das 120 cadeiras da Knesset (Parlamento). Depois de romper, três décadas antes, com o unipartidarismo de fato, Sharon instaurava agora o tripartidarismo, assumindo o cobiçado centro, o que nenhum partido até hoje conseguira em Israel.

“Tudo indica que o Kadima será o partido-pivô, no sentido em que ganhará a maioria tanto à direita quanto à esquerda dele, o que lhe dá uma vantagem muito clara em relação a qualquer outro partido”, constata o cientista político Avraham Diskin, especialista em pesquisas de opinião. “Seja quem for seu líder, provavelmente (o vice-primeiro-ministro Ehud) Olmert, será o próximo primeiro-ministro. É muito improvável que algo diferente aconteça.”

Há uma terrível ironia no timing do derrame de Sharon. Ele ocorreu no momento em que um escândalo de propina de US$ 3 milhões – que sua família teria recebido de austríacos donos de um luxuoso cassino em Jericó – ameaçava atingi-lo “no pico de sua popularidade”, observa Diskin. Com Sharon em coma, “as pessoas pararam de julgá-lo, e apenas sentem empatia por ele”, analisa.

“No curto prazo, pelo menos até as eleições, essa empatia beneficiará Olmert e o Kadima”, acredita o sociólogo Moshe Lissak, da Universidade Hebraica, em Jerusalém. “Até agora, Olmert não era tão popular. É um político inteligente, bom para articular alianças.” O vice-primeiro-ministro foi prefeito de Jerusalém durante dez anos (1993-2003), graças não ao seu carisma, mas à sua capacidade de se aliar com os ultra-ortodoxos da cidade.

Se o quadro eleitoral se mantiver, a capacidade de Olmert de articular alianças será instrumental depois de 28 de março, quando terá de escolher parceiros para uma coalizão que lhe garanta maioria na Knesset. Uma vez no governo, Olmert seguirá o plano de Sharon, que ele, aliás, ajudou a conceber, de separar a Cisjordânia (e o futuro Estado palestino) de Israel com um muro que vem sendo construído, desocupar partes do território e consolidar a ocupação de outras. Mas num outro ritmo. “Ele não tem a mesma autoridade, capacidade e energia”, analisa Lissak. “Deverá fazer as coisas mais gradualmente.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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