Hezbollah posa de guardião nacional

Grupo procura ser retratado não mais como uma força xiita, mas como defensor da dignidade libanesa

BEIRUTE – Nos últimos dias, o Hezbollah espalhou pelo Líbano outdoors associando a sua pretensa vitória na guerra contra Israel a símbolos nacionais, como o Exército e a bandeira do Líbano. É clara a intenção, já implícita nos pronunciamentos à nação do seu líder, Hassan Nasrallah, que durante a guerra trocou a retórica incendiária pela de estadista: o grupo quer emergir, não mais como um partido e uma milícia xiitas, mas como o guardião da dignidade nacional.

“Sempre ocorre o mesmo”, diz Jihad Zein, editor de opinião do jornal An-Nahar. “Quando acaba uma guerra, começa a guerra das interpretações. Até hoje não sabemos se perdemos ou ganhamos a guerra de 1973 (em que Israel enfrentou simultaneamente o Egito, a Síria e a Jordânia). Se você disser que os árabes foram derrotados, é considerado traidor. Até agora, o Hezbollah está vencendo a guerra das interpretações”, admite Zein, que, apesar de xiita, opõe-se ao grupo.

“O povo estava à procura de um ‘Führer'”, diz George Jeadah, um cristão de 53 anos, jornalista da Agência de Notícias Nacional, usando o título de “líder”, em alemão, conferido a Adolf Hitler. “Pois encontraram”, prossegue Jeadah, referindo-se a Nasrallah, cujo nome significa “vitória de Deus”, o slogan do Hezbollah para esta guerra. “O Hezbollah é bem organizado e equipado, enquanto que a oposição está paralisada”, resigna-se Jeadah. “Eles vão assumir o poder.”

O termo “oposição”, no Líbano, é sintomaticamente aplicado ao grupo do primeiro-ministro Fuad Siniora, porque se opõe à influência da Síria, que, mesmo tendo sido obrigada a se retirar militarmente do Líbano no ano passado continua com seus interesses representados pelo presidente da República, o cristão Émile Lahoud, e pelo do Parlamento, o xiita Nabih Berri.

“Acho que a propaganda do Hezbollah está funcionando mais no mundo árabe do que no Líbano”, estima Zein, fazendo uma distinção habitual para os libaneses, embora também sejam árabes. “Sim, eles são corajosos e fiéis, mas, precisamos disso? Não sei como podem falar em vitória diante de tanta destruição.”

O irônico é que essa destruição, produzida pelos bombardeios israelenses, mas provocada pela captura de dois soldados de Israel pelo Hezbollah, tem servido para o grupo xiita demonstrar sua capacidade de organização e sensibilidade social, calcada no pródigo patrocínio iraniano. No primeiro dia do cessar-fogo, há duas semanas, Nasrallah anunciou à nação: “Amanhã mesmo começaremos a reconstrução. Não dá para esperar o governo. É muito burocrático e lento.”

Um executivo do Hezbollah ouvido pelo Estado estima o gasto total em US$ 1 bilhão. Além de reconstruir as casas e prédios, o grupo distribui entre US$ 12 mil e US$ 15 mil para cada família alugar uma moradia temporária e comprar móveis e pertences destruídos. Por conta disso, Faddoul Elias Faddoul, presidente do Sofres, o mais importante instituto de pesquisas de opinião no Líbano, acha que não é hora de fazer uma sondagem: “A população xiita está sendo literalmente comprada.”

Para Faddoul, de família cristã maronita, a resposta à pergunta sobre se o Hezbollah destruiu ou salvou o Líbano depende do grupo religioso a que cada um pertence. “Os xiitas pensam diferente dos sunitas, e os cristãos estão divididos, entre os que pensam como os xiitas e como os sunitas”, resume o especialista.

“As pessoas estão conscientes do que se passa, mas sabem que não podem fazer nada”, interpreta Faddoul. “É um governo fraco, de um país fraco. O Líbano foi completamente destruído na guerra civil de 1975 a 1990 e ocupado pelos sírios entre 1990 e 2005. As pessoas estão cansadas.”

Faddoul reconhece, no entanto, que há um resquício de sentimento de união nacional, deixado pelo Movimento 14 de Março, uma explosão de indignação que levou mais de 1 milhão de pessoas às ruas depois do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafic Hariri, no ano passado, e que resultou na expulsão da Síria. “Pela primeira vez, o povo sentiu que tinha poder. Mas a identidade religiosa é um grande obstáculo para o sentimento nacional.”

“O Hezbollah venceu politicamente e ideologicamente”, avalia o sunita Ahmed Moussalli, de 50 anos, professor de ciência política da Universidade Americana de Beirute, e um dos mais prestigiados analistas no Líbano. Moussalli acredita que o Hezbollah terá mais força na política libanesa em geral e que tenha ganhado mais “credenciais” na comunidade sunita, ao passo que já tinha feito uma aliança tática com um dos principais líderes cristãos, o general Michel Aoun.

Mas o cientista político adverte que ninguém foi capaz, até agora, de unificar as comunidades cristã e sunita sob sua liderança. O sistema eleitoral libanês privilegia as divisões religiosas. Se um partido obtém 51% dos votos e outro, 49%, o que teve 51% fica com toda a bancada daquela base eleitoral no Parlamento. Assim, para eleger deputados nos distritos eleitorais cristãos e sunitas, o Hezbollah teria de ter mais votos do que os partidos que pertencem a essas comunidades, o que seria impensável.

Apesar dessas garantias, muitos cristãos libaneses começam a suspeitar que a consolidação do poder do Hezbollah, combinada ao acelerado crescimento demográfico da população xiita, tornará gradualmente inviável sua permanência no país. “Os cristãos têm de ir embora daqui”, diz a dentista Josephine Nasser, de família maronita, cujo filho de 30 anos está providenciando os papéis para emigrar para o Canadá. “Temos de aceitar que esta é uma região islâmica. Acabou. Estive em todas as guerras. Para mim, chega.”

A composição demográfica do Líbano é um tema tão delicado que o governo não se atreve a fazer um censo completo desde 1935. Oficialmente, o Líbano tem 35% de xiitas, 30% de sunitas, 30% de cristãos e 5% de drusos – em números arredondados, de um minicenso realizado em 1995 com 10% da população. O estatístico Faddoul estima que, na realidade, já sejam 45% de xiitas, 27% de sunitas, 23% de cristãos e 5% de drusos.

Um funcionário cristão do governo, que se identifica apenas como Youssef, desabafa: “Coexistência, sim, mas desde que haja acordo sobre alguns princípios básicos. Se querem destruir nosso país para ir para o paraíso, não podemos coexistir.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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