O novo xadrez do Oriente Médio

DIVISÃO NO MUNDO ISLÂMICO: homem passa em frente a escritório da Qatar Airways em Riad, na Arábia Saudita; voos para o Emirado foram suspensos/ Faisal Al Nasser/ Reuters

TIBERÍADES, Israel – Realinhamentos que vinham se gestando havia alguns meses consumaram-se nos últimos dias, depois das visitas do presidente Donald Trump à Arábia Saudita e a Israel, no fim de maio. De um lado, Rússia, Turquia, Irã e Catar; de outro, Estados Unidos, Israel, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrein. Hezbollah e Hamas seguem trabalhando para o primeiro grupo, enquanto o Estado Islâmico, que realizou seu primeiro atentado em Teerã na semana passada, oferece seus serviços ao segundo.

O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, denunciou nesta terça-feira a decisão de Arábia Saudita, seus vizinhos e o Egito de romper relações econômicas e políticas com o Catar como uma “pena de morte” contra o emirado, e uma violação dos valores islâmicos. A justificativa para o rompimento, anunciado no dia 5, foram o diálogo do Catar com o Irã e seu apoio a grupos sunitas radicais, que o país nega.

O chanceler turco, Mevlut Cavusoglu, informou que Erdogan trataria do tema com Trump nos próximos dias. A Turquia é membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), mas, já no final do governo de Barack Obama as relações com os EUA se tornaram tensas, depois que Erdogan se reaproximou do presidente da Rússia, Vladimir Putin. Agora que Trump ameaça romper o acordo nuclear com o Irã e alinhar-se quase incondicionalmente com a Arábia Saudita e Israel, o distanciamento EUA-Turquia tende a agravar-se.

Putin e Erdogan conversaram pelo telefone na segunda-feira.

De acordo com o Kremlin, “os presidentes exortaram todos os lados envolvidos a um diálogo para criar soluções de compromisso no interesse de preservar a paz e a estabilidade na região do Golfo”. Ainda segundo o comunicado, os dois presidentes discutiram como colocar em prática acordos firmados recentemente para reduzir a presença militar em algumas regiões da Síria.

A Rússia, assim como o Irã, apoia militarmente o regime do ditador sírio, Bashar Assad. Já a Turquia é acusada de haver tolerado a movimentação de grupos extremistas sunitas em seu território, para que lançassem ataques contra o regime sírio, e também contra a guerrilha curda, que é vista como inimiga por Ancara, por causa do movimento separatista dessa etnia no sudeste do país. Entretanto, Erdogan e Putin têm procurado uma convergência de seus objetivos na Síria, onde a Rússia mantém uma base naval.

No dia 6, um dia depois do rompimento, Putin telefonou para o emir do Catar, Tamim al-Thani, e “reafirmou a posição de princípio da Rússia em favor de resolver crises através do diálogo”. Com apenas 2,7 milhões de habitantes, o Catar é um país sunita, assim como seus vizinhos, mas o emir tem procurado nos últimos anos sair da sombra da Arábia Saudita e alçar voo próprio.

Em 2011, o país financiou o armamento e treinamento — pelos franceses — da brigada líbia que avançou contra Trípoli e derrubou o ditador Muamar Kadafi, em agosto daquele ano. Por sinal, o governo do leste da Líbia também rompeu com o Catar. O emirado tem patrocinado, também, o movimento palestino Hamas e grupos radicais sunitas na Síria, além da boa interlocução do Irã. A rede de TV Al-Jazeera e a companhia Qatar Airways — que agora não pode mais usar o espaço aéreo dos vizinhos e do Egito, o que torna seus voos mais longos — são outras iniciativas na mesma direção.

O Irã, que até dezembro sofria com um severo embargo econômico,  começou na segunda-feira a enviar frutas e verduras para o Catar. No total, já foram entregues por avião 90 toneladas, e a ajuda continuará “com base na demanda”, segundo a agência iraniana Tasnim. Três navios, carregando mais de 350 toneladas de comida, também deixarão o Irã em direção ao Catar. O país importava 80% dos alimentos que consome dos vizinhos, e está negociando com o Irã e a Turquia o fornecimento tanto de comida quanto de água, segundo a agência Reuters.

A Turquia e o Catar têm ajudado a Irmandade Muçulmana, que governou o Egito entre 2011 e 2012 depois de vencer eleições. Mas acabou derrubada pelos militares, que governavam o país desde 1952 e reassumiram, em meio a uma onda de protestos contra suas tentativas de impor o cumprimento das leis islâmicas no país. Um ano depois, o general Abdel-Fattah al-Sisi, que chefiava a junta militar provisória, elegeu-se presidente.

O grupo palestino Hamas, que governa a Faixa de Gaza há dez anos, desde que venceu uma eleição e expulsou a facção secular Fatah do território, é uma ramificação da Irmandade. Criado em 1988, no entanto, o grupo modificou sua carta de princípios recentemente, declarando-se um movimento nacional independente e não mencionando mais o tradicional grupo egípcio. Depois de retomar o poder, os militares impuseram um bloqueio à Faixa de Gaza, que já estava sob bloqueio de Israel desde 2007.

Ao romper com o Catar, Arábia Saudita e seus aliados não apresentaram exigências, pelo menos em público. O ministro das Relações Exteriores do Catar, Abdul-Rahman al-Thani, disse na segunda-feira que o governo “ainda não tinha nenhuma pista” sobre os motivos da iniciativa. Mas, segundo informações que têm circulado, as condições para o reatamento incluiriam o rompimento das relações com o Irã, a expulsão de todos os membros do Hamas e da Irmandade Muçulmana, o congelamento de todas as contas bancárias de seus membros, o fim do apoio a “organizações terroristas” e da interferência nos assuntos egípcios. Até mesmo o fechamento do canal Al-Jazeera, que propaga mundialmente as visões do Catar, estariam na lista.

Inicialmente, pensou-se que o Catar cederia. O repórter de Exame Hoje estava em Gaza quando o rompimento ocorreu, na semana passada, e o impacto foi forte sobre o território, pelo temor de perder a ajuda do Catar. Depois da semi-destruição da Faixa de Gaza pelos bombardeios israelenses na guerra contra o Hamas em 2014, o emirado lhe prometeu US$ 1 bilhão.

As condições de vida dos palestinos já vêm se deteriorando por causa de cortes orçamentários da Autoridade Palestina (AP), dominada pelo Fatah, que governa a Cisjordânia e pressiona o Hamas a cumprir um acordo que prevê um governo de coalizão.

A AP repassa 230 milhões de shekels (R$ 230 milhões) por mês para o pagamento de funcionários na Faixa de Gaza, e no fim de abril reduziu 30% desse montante, ou seja, 69 milhões. Além disso, cortou os 40 milhões de shekels de pagamento mensal da eletricidade fornecida por Israel, que corresponde a 30% do que é consumido na Faixa de Gaza. A oferta de energia elétrica, antes de 6 horas por dia, caiu para 4.

Embora a Arábia Saudita tenha aproveitado a reunião de seu rei, Salman al-Saud, com Trump, para romper com o Catar, os EUA não podem descartar a parceria com o emirado tão facilmente: lá se encontram dois postos de comando militares americanos, um para o Oriente Médio e Afeganistão, outro para os bombardeios aéreos contra o EI na Síria e no Iraque. Uma ruptura com os EUA é improvável, mas todos esses desdobramentos tendem a aumentar a importância da Rússia na região, como contrapeso à influência americana.

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