Medo divide os sírios

Muitos que apoiam o regime temem que a liberdade não aumente, mas diminua sem ele

DAMASCO – Na celebração da independência da Síria, convertida em manifestação de apoio a Bashar Assad, na terça-feira, Sana Nasser subiu ao palanque montado em frente à sede do Banco Central e discursou para as cerca de 300 pessoas presentes. Vestindo uma jaqueta militar de camuflagem, ela afirmou que daria seu sangue pelo presidente: “Ele nos dá tudo.”

Sana, de 47 anos, é dona de casa. Seu marido, engenheiro, trabalha para o governo. Mas essa não é a única explicação para o seu fervoroso apoio a Assad. “Eu dirijo carro às 3 horas da manhã, se quiser”, disse ela. “Eu nado de biquíni na praia. Isso não existe em nenhum outro país árabe.” Quando o repórter perguntou a Sana e a seus filhos adolescentes – um rapaz e duas moças – se não tinham anseio de liberdade, eles responderam: “O que temos aqui é liberdade.”

Salsan Jerir, de 42 anos, também dona de casa, trazia uma camiseta com o desenho de três leões. Ela explicou que o primeiro representava Hafez, o pai de Bashar, que ficou no poder entre 1970 e 2000, e cujo nome significa “leão” em árabe; o segundo, Bashar e o terceiro, Haidera, seu filho. “Assad por mais 40 anos”,  pediu ela, quando o repórter perguntou se não era ruim ser governado por pai e filho durante 42 anos. “Eu morreria pelo doutor Bashar”, afirmou Salsan, que como os simpatizantes do presidente o chamam assim por sua formação de oftalmologista.

O marido de Salsan é dono de uma granja de frangos. Segundo ela, não tem relação com o governo. Assim como Sana, Salsan teme que a queda de Assad transforme a Síria em uma república islâmica, regida pelas normas da Sharia, que restringem severamente os direitos das mulheres e outras liberdades com as quais os sírios estão acostumados, como as bebidas alcoólicas. Em Damasco, algumas moças que antes saíam com o cabelo à mostra passaram a usar o véu, com medo de ataques nas ruas.

Um dos slogans-chave dos oposicionistas sírios é “hurria”, “liberdade”. Paradoxalmente, os partidários do regime também lutam por liberdade. Eles temem que a revolução não só não lhes traga a liberdade política, que obviamente eles não têm, mas lhes roube a liberdade de costumes e de religião.

Esse medo é alimentado por muitos sinais. O apoio à oposição dado pela Arábia Saudita e pelo Catar, dois países extremamente conservadores nos costumes e também autoritários politicamente, é um deles. As monarquias sunitas do Golfo são rivais regionais do Irã, que apoia o regime sírio. O Irã é um país xiita, seita da qual provém a minoria alauíta, que Assad representa. Os alauítas não observam alguns rituais do Islã e não são considerados muçulmanos por muitos sunitas.  Exilado na Arábia Saudita, o xeque Adnan Arour aparece cotidianamente em emissoras captadas pelas antenas parabólicas, com mensagens que combinam fervor religioso e um implacável espírito de perseguição contra os que apoiam o regime. Recentemente ele recomendou “moê-los”.

Dois atentados suicidas cometidos em janeiro contra instalações das forças de segurança em Damasco indicaram o envolvimento de grupos salafistas (radicais sunitas),  inspirados na Al-Qaeda, se não diretamente vinculados a ela: num raciocínio simples, só esse tipo de grupo é capaz de recrutar suicidas. Há relatos também de degolas – típica execução islâmica de “infiéis” – de policiais e governistas.

Assad, assim como Saddam Hussein no Iraque, Muamar Kadafi na Líbia, Hosni Mubarak no Egito e Zine el-Abidine Ben Ali na Tunísia, pertence a uma linhagem de ditadores secularistas, de tradição nacionalista e estatista, opostos à influência da religião na política.

“Esse é o truque do regime”, contestou um ex-gerente de banco em Deraa, 100 km ao sul de Damasco, onde o levante começou há 13 meses. Deraa é considerada um reduto religioso conservador. O ex-gerente, de 34 anos, perguntou aos outros oito homens que conversavam com o repórter do Estado quais faziam as cinco orações diárias. Metade disse que sim, a outra metade respondeu que não. “Está vendo? Eles não rezam porque às vezes estão bebendo com os amigos”, disse o ex-gerente, enquanto todos riam. “No entanto, todos nos manifestamos todos os dias contra o regime. A religião não tem nenhuma importância.” Eles disseram que concordam com algumas ideias de Arour,  e que o que ele prega é autodefesa. “Não podemos parar, se não vão nos pegar um por um.”

Um slogan disseminado pela Síria, atribuído a Arour e a seus seguidores, provoca calafrios nas minorias religiosas: “Cristãos para Beirute, alauítas para o caixão”. Os alauítas são cerca de 12% da população e os cristãos, 10%. A parcela secularista da oposição tem tentado afastar essa imagem de intolerância religiosa. A influência da Irmandade Muçulmana sobre o Conselho Nacional Sírio, a frente anti-regime no exílio, preocupa os oposicionistas organizados dentro do país, entre eles o Comitê de Coordenação Nacional e o partido Construindo o Estado Sírio, liderado pelo alauíta Louay Hussein.

A experiência de revoluções passadas em países muçulmanos mostra que todas as correntes podem se reunir no esforço de derrubar o regime, mas depois os islâmicos, mais unidos, organizados, hierárquicos e com profunda penetração em populações que afinal têm uma forte religiosidade, capturam o poder. Foi assim no Irã, em 1979. O Ennahda, na Tunísia, a Irmandade Muçulmana e o partido salafista Al-Nur, no Egito, foram os mais votados nas primeiras eleições livres. A Líbia ainda não teve eleições, mas a força dos islâmicos é óbvia, representada por exemplo pelos comandantes do Conselho Militar de Trípoli, Abdel-Hakim Belhadj, e de Benghazi, Ismail Salabi, irmão do xeque Ali Salabi, que como Arour pregava do exílio no Catar – embora com uma retórica bem menos incendiária. O próprio presidente do governo interino, Mustafa Abdul Jalil, tem-se mantido graças a suas credenciais religiosas, embora fosse ministro da Justiça de Kadafi.

Uma parcela importante – e mais silenciosa – dos sírios não gostava de Assad, mas sente falta da estabilidade e da segurança que ele representava, e que se perdeu, sem que em seu lugar viesse a liberdade política ou um regime funcional. “Antes eu não gostava do regime. Mas, se fosse votar hoje numa eleição secreta, votaria em Assad”, disse um dono de farmácia no centro de Damasco. “O povo não é forte o suficiente para derrubá-lo. Não queremos mais derramamento de sangue inútil. Antes vivíamos tranquilos.”

“No resto da Síria, o povo está forte”, disse o dono de uma loja no bazar Hamidiyeh, o mais antigo da cidade. “Se pudéssemos trazer armas para Damasco, isso já estaria acabado. Mas nunca pensamos que fôssemos precisar de armas, e a segurança na cidade foi redobrada. Agora é impossível. Isso vai se arrastar por muito tempo.”

Talvez não só pela falta de armas, mas pelos receios que dividem os sírios.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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