Raqqa: um golpe fatal para o Estado Islâmico

A tomada de Raqqa acaba com o projeto de califado islâmico do grupo, mas não elimina a razão de sua existência

RAQQA: forças democráticas sírias comemoram tomada da cidade; ação foi comandada por uma comandante curda | Erik De Castro/ Reuters

As Forças Democráticas Sírias (SDF), uma coalizão de guerrilheiros curdos e árabes armada e treinada pelos Estados Unidos, anunciou nesta terça-feira a tomada de Raqqa, a “capital” do Estado Islâmico (EI), no nordeste da Síria. A conquista coroa outras derrotas importantes do grupo nas cidades iraquianas de Mossul e Hawija.

O território ocupado pelo EI nessa região que constituiu o seu berço há três anos fica reduzido agora a uma estreita faixa nas margens do Rio Eufrates, entre o leste da Síria e o oeste do Iraque. Segundo analistas ouvidos por EXAME, é uma importante derrota simbólica, que no entanto não põe fim necessariamente ao grupo. E principalmente não elimina a razão de sua existência: os descontentamentos dos sunitas em várias regiões do mundo muçulmano.

Para aumentar o sentimento de humilhação dos extremistas islâmicos, que impõem nas cidades que ocupam um rigoroso código de conduta sobre as mulheres, a tomada de Raqqa foi liderada pela comandante curda Rojda Felat.

A vitória ocorre depois de quatro meses de batalha, na qual a SDF contou com o apoio de bombardeios aéreos dos EUA e de assessores militares americanos no terreno. Cerca de 1.000 moradores da cidade morreram nos combates. Depois de uma última ação defensiva que teve como base o estádio e um hospital da cidade, os combatentes do EI se renderam mediante promessa de não serem punidos.

Assim como ocorreu com Mossul, Raqqa está arrasada. Talo Silo, porta-voz da SDF, disse que as ações militares cessaram e que os guerrilheiros estavam buscando explosivos e células adormecidas.

O EI já estava militarmente enfraquecido pelo corte nas linhas de suprimento entre o Iraque e a Síria, e pela queda em julho de Mossul, a segunda maior cidade iraquiana e a maior ocupada pelo grupo, e de Hawija, no último dia 5. Nessa cidade do norte do Iraque, 1.000 integrantes do grupo se renderam.

Capital da província de mesmo nome, Raqqa foi o palco dos mais sórdidos e impactantes golpes de propaganda do EI, a começar pela decapitação do jornalista americano James Foley, em agosto de 2014, em que ele foi filmado de joelhos, cabeça raspada e uniforme de presidiário americano, e obrigado a criticar a política externa do então presidente Barack Obama, antes de ter seu pescoço serrado com uma faca.

Essa e outras filmagens de atrocidades contra reféns e prisioneiros eram conduzidas por Mohammed al-Emwazi, cidadão britânico nascido no Kuwait. Apelidado de Jihadi John, ele foi morto pelo disparo de um drone americano na praça central de Raqqa em novembro de 2015. A liderança do EI em sua capital foi dizimada pelas ações com drones.

O próximo reduto importante do EI fica na província de Deir al-Zour, ao sul de Raqqa. As forças leais ao ditador sírio Bashar Assad, apoiadas por aviões russos e por guerrilheiros patrocinados pelo Irã, estão avançando naquela direção. O presidente Donald Trump terá de decidir agora se autoriza o envio das forças pró-americanas para disputar aquele território, o que representaria uma ampliação da presença curda na geografia síria, ou se deixa essa conquista para a coalizão pró-síria.

Com a perda de território no Iraque e na Síria, o EI tenta se estabelecer noutros países conflagrados. Pela primeira vez, drones americanos atacaram nesta terça-feira redutos do grupo no Iêmen, na província de Al-Bayda, a sudeste da capital, Sanaa, onde o EI mantém campos de treinamento.

O território iemenita é cenário de uma guerra com diversas frentes, grupos e países, desde que o governo do presidente Abed Rabbo Mansour Hadi foi derrubado em 2014 por um levante dos rebeldes houthis (xiitas), apoiado pelo Irã, que disputa com a Arábia Saudita influência sobre o Golfo Pérsico e o Oriente Médio. Os sauditas bombardeiam constantemente alvos houthis no país, onde há também presença da Al-Qaeda, que assim como o EI é sunita.

As derrotas militares do EI na Síria e no Iraque significam a perda de fontes de receitas com sequestros, comércio de petróleo, confiscos de bens e extorsões das populações locais, além de campos de treinamento e bases de operações terroristas.

“Perder Raqqa é certamente um golpe fatal para o EI, cuja legitimidade é construída sobre a reivindicação territorial, o assim chamado Califado Islâmico, que o diferencia da Al-Qaeda”, disse a EXAME o analista turco Mustafa Gurbuz, pesquisador do Arab Center Washington e professor da American University, na capital americana. “O EI está agora de joelhos, mas não completamente fora do jogo. O grupo vai explorar as divisões do leste da Síria e do oeste do Iraque, onde a estrutura tribal ainda é forte, e as queixas dos sunitas ainda não foram atendidas.”

Desde a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, o país é governado pela maioria xiita, que tem dificultado o acesso dos sunitas a empregos e contratos públicos, entre outros benefícios. Já a Síria é governada desde 1970 pela minoria alauíta, uma derivação dos xiitas, embora a maioria da população seja sunita. Essas realidades explicam o apoio, pelo menos inicial, de parte das populações dos dois países, ao EI.

“No leste da Síria, muitos árabes sunitas estão com medo de um futuro sob o domínio dos curdos ou do brutal regime de Assad”, continuou Gurbuz. “No oeste do Iraque, milícias xiitas estão expandindo seu poder e influência nas cidades e vilarejos sunitas devastados pela guerra. Assim, a eliminação do EI pode não significar necessariamente o fim do problema. O EI foi um sintoma, não a causa.”

Além disso, com a derrota militar, o EI pode concentrar seus esforços nas ações terroristas. “A terrível verdade é que o EI será tão mortal como rede insurgente e terrorista que como um ator de natureza estatal”, avalia Nicholas Heras, pesquisador do Center for a New American Security, também em Washington. “Os ataques na Europa continuarão por algum tempo”, completa Aymenn Jawad al-Tamimi, especialista britânico em terrorismo islâmico, cuja família é originária de Mossul. “A derrota do EI como projeto de Estado diminui seu apelo, mas ele terá seguidores por muito tempo.”

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