O paradoxo turco

TURQUIA: o país está crescendo por causa desses problemas, e não apesar deles/ Uriel Sinai/ Getty images

Lourival Sant’Anna

A economia turca cresceu 4,8% no primeiro trimestre — o melhor desempenho da Europa e o quarto no G-20. Ainda é menor do que no primeiro trimestre do ano passado, quando o índice bateu 5,7%, mas mesmo assim é surpreendente, levando em conta todos os problemas enfrentados pelo país: os ataques terroristas do Estado Islâmico, o conflito com a guerrilha curda e a vizinhança com a Síria e o Iraque. Entretanto, uma análise mais de perto da economia turca revela, paradoxalmente, que ela está crescendo por causa desses problemas, e não apesar deles.

O aumento do PIB tem sido puxado por gastos públicos e privados, e não por investimentos, produção ou geração de emprego, observa Ender Yorgancilar, presidente da Câmara de Indústria da Região do Egeu. Segundo dados do Instituto Estatístico Turco (Tuik), o consumo privado cresceu 6,9% no primeiro trimestre, puxado pelos gastos com saúde, que estão em primeiro lugar no ranking, com 22% de aumento. Já o gasto público subiu 10,9% em comparação com igual período do ano passado — o maior índice desde 2009. No mesmo período do ano passado, esse gasto havia crescido 6,7%.

Os dois índices apontam para os custos do terrorismo e do conflito: só o atentado de terça-feira no aeroporto de Istambul deixou 239 feridos, além dos 42 mortos. A onda de ataques do Estado Islâmico — que nunca os assumiu oficialmente — começou em junho de 2015, depois que o presidente Reccep Tayyip Erdogan concordou em ceder a base aérea de Incirlik para as missões de bombardeio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra alvos do grupo na Síria e no Iraque.

O conflito com os curdos recomeçou em março do ano passado, depois que o Partido Democrático Popular (HDP), que representa a minoria, anunciou que não apoiaria as mudanças constitucionais pretendidas por Erdogan para concentrar mais poderes nas mãos do presidente — empurrando o regime do parlamentarismo para o presidencialismo. Erdogan exerceu o cargo de primeiro-ministro entre 2003 e 2014, esgotou as possibilidades de reeleição e desde então ocupa a presidência.

As guerrilhas curdas Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e Falcões da Liberdade do Curdistão (TAK) passaram a atacar as forças de segurança no sudeste do país, deixando dezenas de mortos. Milhares de soldados e policiais foram deslocados para a região, apoiados por centenas de veículos blindados, tanques e helicópteros. A mobilização envolve também gastos com alojamento, combustível, alimentação e munição.

De acordo com o Índice Global da Paz de 2016, elaborado pelo Instituto para a Economia e a Paz, um centro de pesquisas independente, o governo turco gastou US$ 94 bilhões em 2015 com o combate ao terrorismo e à guerrilha curda. Isso representa 13% do PIB de US$ 717 bilhões. Entre janeiro e maio deste ano, houve aumento de 40,5% nos gastos com defesa e segurança, e de 17% nas despesas discricionárias do presidente e do primeiro-ministro Binali Yildirim, relacionadas com atividades confidenciais, que podem incluir operações do serviço secreto.

O governo turco anunciou que vai “reconstruir” seis cidades do sudeste do país, parcialmente destruídas pelos confrontos entre as forças de segurança e a guerrilha curda. Na primeira fase dos trabalhos, o investimento será de US$ 350 milhões. Mais empregos e renda na construção civil e noutros serviços.

Além disso, a Turquia abriga 3 milhões de refugiados — o maior contingente do mundo. Em maio, Erdogan informou que o seu governo já gastou mais de US$ 10 bilhões com a assistência aos refugiados. As administrações locais e as organizações não-governamentais gastaram outros US$ 10 bilhões, segundo o presidente. Ou seja, da crise de 2011 para cá na Síria, foram outros US$ 20 bilhões injetados na economia turca.

Claro que toda essa gastança significa sobrecarga para o governo. Mas o déficit fiscal ainda está abaixo de 2% e a dívida pública, 33% do PIB, o que dá certa folga ao país. E enquanto o gasto público subiu 10,9% no último trimestre, em comparação com o mesmo período de 2015, a arrecadação cresceu 12,7%. Em relatório divulgado nesta sexta-feira, dia 1, a agência de avaliação de risco Fitch prevê déficit nominal de 1,8% em 2016. O superávit primário deve reduzir a relação dívida-PIB a 31,4% neste ano.

O déficit na conta corrente deve ficar em 4,8% em 2016, segundo relatório da Comissão Europeia. Esse índice vem caindo, graças à queda no preço do petróleo, de cuja importação a Turquia depende, e também a uma melhora na entrada de capital estrangeiro. A dívida externa representou 38,6% do PIB no ano passado. A Fitch prevê que ela subirá para 40,1% este ano e para 40,4% em 2017, antes de cair para 37% em 2018. A agência projeta um crescimento do PIB de 3,5% este ano, 3,6% em 2017 e 3,5% em 2018, comparado com 4% em 2015. A inflação bateu em 6,6% em maio, acima da meta de 5%. Mesmo assim, o Banco Central reduziu no dia 21 a taxa de juros de 9,5% para 9%, num sinal claro de que a prioridade é manter o crescimento.

“Um desempenho tão forte muito provavelmente não é sustentável para a Turquia no longo prazo”, analisa Peter de Bruin, economista sênior para mercados emergentes do banco ABN Amro. O ranking de risco do site Euromoney baixou a Turquia da 53.ª posição em setembro do ano passado para a 58.ª, ligeiramente acima do Brasil, considerado “outra preocupação notável”.

Em seis meses, foram quatro atentados a bomba em Istambul, cobiçado destino turístico, com seus palácios otomanos, mesquitas famosas, cafés e ruas charmosas e vistas fantásticas para o Mar de Marmara e para os Estreitos de Bósforo e Dardanelos, que dividem Europa e Ásia. O turismo, que representou 5% do PIB no ano passado, caiu 23% nos cinco primeiros meses deste ano. Em maio, a queda no número de turistas chegou a 35%, comparado com o mesmo mês de 2015. No ano passado, o país atraiu 36,2 milhões de turistas, que geraram receitas de US$ 31,4 bilhões, importante fonte de reservas externas.

Turistas da Arábia Saudita, China e Tunísia estavam entre os mortos no atentado de terça-feira, contra o Aeroporto Atatürk, o terceiro mais movimentado da Europa. Faz parte da doutrina do Estado Islâmico, herdada da Al-Qaeda no Iraque, que a elaborou em 2004, atingir o turismo como espinha dorsal das economias dos regimes “inimigos”, como é também o caso do Egito, França e Indonésia. Dos 12 mortos no atentado de janeiro perto da mesquita Sultanahmet, 10 eram alemães.

Gerrit Quaas, gerente de um hotel no bairro de Galata, em Istambul, disse que os hóspedes não estão mais aceitando pagar adiantado pelas reservas. “Eles querem poder cancelar. Não confiam na Turquia”, observou o gerente, que chamou este ano de “desastroso”.  “Não recebemos cancelamentos porque não tínhamos clientes”, lamentou uma guia turística.

O número de visitantes russos — uma das importantes nacionalidades de turistas na Turquia — já havia caído mais de 80% depois que o governo da Rússia proibiu a venda de pacotes e vôos charter para o país. A medida foi tomada em represália à derrubada em novembro de um caça russo, cujo piloto foi morto. A Força Aérea turca alegou que o avião, que bombardeava posições dos rebeldes no norte da Síria, invadira o espaço aéreo da Turquia.

Na segunda-feira, véspera do atentado no aeroporto de Istambul, Erdogan enviou uma carta ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, oferecendo suas condolências à família do piloto russo, e afirmando que “faria todo o possível” para restaurar as relações com o país. Putin ligou para Erdogan na quarta-feira, e ambos devem se reunir ainda antes da cúpula do G-20, marcada para setembro na China. O governo russo informou que vai rever as sanções turísticas contra a Turquia.

A carta de Erdogan realmente rendeu. Ainda na segunda-feira, a gigante da energia Gazprom anunciou sua disposição de retomar as negociações para a construção do gasoduto Turkish Stream, alternativa de escoamento do gás russo para a Europa, que hoje passa necessariamente pela Ucrânia. O projeto havia sido suspenso em dezembro, depois da derrubada do avião.

Também na segunda-feira, a Turquia normalizou as relações com Israel, rompidas desde 2010, quando uma flotilha liderada por um navio turco tentou levar ajuda humanitária para os palestinos na Faixa de Gaza, furando o bloqueio imposto por Israel. Comandos israelenses invadiram o navio e mataram 11 cidadãos turcos. Em 2013, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, pediu desculpas à Turquia pela morte de seus cidadãos, depois de se reunir com o presidente Barack Obama. Israel concordou em pagar US$ 20 milhões de indenização para as famílias dos mortos e permitiu o envio de 10 mil toneladas de ajuda humanitária, equipamentos e material de construção para a Faixa de Gaza, onde o governo turco pretende construir um hospital de 200 leitos, um conjunto habitacional e uma usina de dessalinização.

Nessa quinta-feira, 30, representantes da União Europeia e do governo turco realizaram a 12.ª reunião sobre o ingresso da Turquia no bloco. O tema foi o Capítulo 33 — provisões financeiras e orçamentárias. As negociações tomaram impulso depois do acordo de março, pelo qual a Turquia se comprometeu a receber de volta imigrantes sírios e de outras nacionalidades que chegam à Europa. Em troca, a UE dobrou para US$ 7 bilhões sua ajuda ao país para cobrir as despesas com os refugiados.

É Erdogan retomando sua política de “problema zero” na política externa, abandonada na Primavera Árabe, em 2011, quando ele decidiu se tornar o novo líder do mundo árabe-muçulmano. Acusado de corrupção e autoritarismo, enfrentando o terrorismo islâmico e o separatismo curdo, o presidente turco realmente não está precisando de problemas.

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