‘Turquia tem o direito de defender-se’

Dogu Ergil, cientista político turco, autor de um estudo sobre o Curdistão, diz que curdos iraquianos querem garantir a independência da região

A Turquia tem o direito de se defender dos ataques do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), a milícia curda turca no norte do Iraque, e os EUA compreenderão isso. No entanto, é provável que o governo iraquiano, a administração curda no norte do Iraque e os militares americanos comecem a se mexer para conter os 3 mil milicianos, agora que o Parlamento turco autorizou a invasão do Iraque, fazendo o barril de petróleo cruzar a barreira dos US$ 90.

A opinião é do cientista político Dogu Ergil, da Universidade de Ancara. Autor de um estudo sobre o Curdistão que há um ano e meio causou impacto sobre o establishment militar turco, Ergil explica que os milicianos, antes apoiados pelo Irã e pela Síria, adquiriram liberdade de ação para atacar a Turquia a partir das montanhas do norte do Iraque depois que se aliaram aos EUA, que os cooptaram para desestabilizar iranianos e sírios.

Até aqui, a administração curda iraquiana tem usado o PKK como “contenção armada” contra a Turquia no embate sobre a autonomia do Curdistão, diz Ergil, de 59 anos, autor de 23 livros sobre política, história e geopolítica.

Agora, com a autorização do Parlamento turco, concedida na quarta-feira, os curdos devem pensar duas vezes. Caso contrário, uma guerra que já tem tantos fronts poderá ganhar mais um. Ergil falou ao Estado pelo telefone, de Ancara.

O sr. acha que o governo da Turquia pretende usar a autorização do Parlamento para invadir o Iraque?

Essa autorização tinha de ser aprovada. Primeiro, porque já houve uma invasão, a dos EUA. Um militar americano argumentou que a Turquia não poderia invadir o Curdistão iraquiano porque o Iraque é um país soberano. Que ironia, não? Essa autoridade invasora permite que o PKK permaneça lá e ataque a Turquia de lá. E há o governo iraquiano, que não pode fazer nada no norte. Os curdos nem sequer usam a bandeira iraquiana. Quem está no controle no norte do Iraque é a autoridade autônoma curda.

E por que os curdos iraquianos permitem a ação do PKK?

Não porque gostem do PKK. Ele é uma organização armada que desafia todas as autoridades estabelecidas – turcas ou iraquianas. Mas por duas outras razões. O establishment turco, tanto militar quanto civil, deixou claro para os curdos iraquianos que desaprova veementemente seu governo autônomo, que com o tempo se transformará em um Estado curdo independente. A desaprovação se converterá em ação na primeira oportunidade que os turcos puderem aproveitar, para destituir os curdos dessa autonomia. Por isso, a liderança curda iraquiana está usando o PKK como meio de contenção armada contra a Turquia.

Os curdos iraquianos têm uma força armada própria?

Eles têm a sua milícia chamada de peshmergas (“prontos para morrer”, em curdo), com 130 mil homens. Parte dela foi treinada e armada pelo Exército americano. Agora, sob o governo autônomo curdo, parte dela está ajudando os americanos a manterem a ordem em Bagdá. A outra razão é o referendo sobre o destino de Kirkuk (importante cidade do norte do Iraque, de maioria curda e minoria turca, hoje excluída do Curdistão), previsto para o fim deste ano, mas que pode ser adiado para o ano que vem. Kirkuk é uma região rica em petróleo. Os curdos precisam desesperadamente anexá-la porque sabem que, sem essa receita, sua independência ficará inviável. Até esse referendo, a administração curda no Iraque usará o PKK como trunfo contra a Turquia. Eles eliminarão o PKK se a Turquia aceitar a autonomia curda e a anexação de Kirkuk.

E os americanos?

Eles poderiam expulsar o PKK, por ação direta ou por pressão sobre os seus aliados curdos. Mas, até agora, eles têm feito aquele jogo: “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Os iranianos e os sírios já usaram os curdos contra a Turquia. Foi assim que o PKK tornou-se uma organização poderosa, com santuários na Síria e no Irã, onde encontraram patrocínio, treinamento e passagem para o território turco. Agora eles se voltaram contra esses países e são os EUA que usam o PKK para tentar desestabilizá-los. É claro que os americanos não desejavam que o PKK atacasse a Turquia, mas eles ficaram com liberdade de ação no norte do Iraque. São esses cenários entrelaçados que complicam a situação no Oriente Médio.

Por que o Irã e a Síria usavam os curdos contra a Turquia?

Historicamente, o Irã é o grande rival da Turquia na disputa por influência na Ásia Central. Além disso, os iranianos gostariam de exportar o fundamentalismo islâmico para a Turquia, que é o maior país secular do mundo muçulmano. Há uma década e meia os iranianos têm patrocinado operações clandestinas na Turquia. Já a Síria tem dois contenciosos com a Turquia: reivindica a divisão das águas do Tigre e do Eufrates e a província de Hatay, sob controle turco. Os sírios deram asilo a líderes do PKK e deixaram que seus guerrilheiros treinassem no Vale do Bekaa (região libanesa sob controle militar sírio até 2005). Em 1999, a Turquia ia entrar em guerra com a Síria caso ela não expulsasse o líder do PKK, Abdullah Ocalan.

Mas Irã e Síria também temem o nacionalismo curdo, não?

Agora, temem. É por isso que agora estão muito próximos da Turquia. Os curdos iranianos também estão abrigados no norte do Iraque, na montanha de Qandil, e de lá disparam artilharia contra o Irã. O presidente sírio, Bashar el-Assad, está aqui (em Ancara) hoje (sexta-feira), dando apoio total à Turquia para perseguir e expulsar os curdos.

Que tipo de armas o PKK tem?

Basicamente, fuzis Kalashnikov e RPGs (granadas propelidas por foguetes). Em seus arsenais foram encontrados Stingers (mísseis antiaéreos de porte pessoal), mas não foram usados. Há evidências de que agentes da empresa de segurança privada Blackwater (contratada pelos EUA) venderam armas ao PKK clandestinamente. O Departamento de Estado americano está investigando.

Como seria a operação turca no Iraque?

Os nacionalistas turcos defendem uma operação abrangente, que tomaria também a administração das mãos dos curdos. Mas o governo, que é mais moderado, quer uma ação cirúrgica contra todas as bases da milícia do PKK.

Os nacionalistas querem ocupar o norte do Iraque?

De uma certa maneira. Mas essa autorização tem dois significados. O governo cedeu às pressões e deu o mandato aos militares. Se eles falharem, será culpa deles. Além disso, criou-se uma tal atmosfera que uma incursão militar no Iraque resolveria o problema do terrorismo curdo na Turquia. É uma ótima oportunidade. E a possibilidade da ação militar cria uma grande pressão política sobre os americanos, sobre o governo de Bagdá e sobre a administração curda.

O senhor acha que o governo de Bagdá começará a se mexer para conter os curdos turcos?

Sim, acho que haverá uma solução de compromisso. Eles terão de fazê-los parar de atacar o território turco, caso contrário a Turquia tem o direito, de acordo com as leis internacionais e as resoluções da ONU, de defender-se.

Que impacto o reconhecimento da Câmara dos Deputados americana do genocídio dos armênios pela Turquia teve sobre essa equação?

Com isso, os americanos perderam força para pressionar a Turquia.

Uma invasão turca no norte do Iraque afetaria a aliança entre Turquia e EUA na Otan?

O termo correto é incursão, não invasão. Claro que não afetaria. A Otan obteve um mandato para lutar contra o terrorismo. Todos os países têm o direito de se defender contra uma agressão direta. Até os americanos concordam que a Turquia tem direito a uma operação, desde que limitada. O ponto de discordância entre os dois países é a autonomia curda, que os EUA endossam e a Turquia rejeita.

E a Turquia acabará aceitando a autonomia?

É um dado da realidade.

O governo islâmico moderado da Turquia precisa mostrar suas credenciais para defender o país contra uma ameaça?

Sim, o premiê Recep Erdogan precisa mostrar que consegue morder, em vez de latir.

E os investimentos turcos no Iraque?

Empresas privadas turcas têm US$ 3 bilhões de investimentos diretos em infra-estrutura, exploração de petróleo e outros setores, a maioria no norte do Iraque, e planos para chegar a US$ 8 bilhões no ano que vem. Os empresários turcos têm ótimas relações com a administração curda. Mas é investimento privado. Não tem nada a ver com o governo.

Esses investidores não pressionam os militares para evitar uma incursão, que prejudicaria seus negócios?

Pressionam, mas os militares turcos não ligam para pressões.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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