O diplomata que veio do frio

TRUDEAU CUMPRIMENTA TRUMP: “Ambos fomos eleitos comprometidos com a classe média de nossos países. Sabemos que trabalhando juntos asseguraremos uma integração contínua e efetiva.”/ Carlos Barria/ Reuters

Lourival Sant`Anna

Pronto. O México, o Canadá e, em certa medida, o mundo podem respirar aliviados. O presidente Donald Trump recolocou nesta segunda-feira em termos significativamente mais amenos suas expectativas com a renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) — por ele qualificado, na campanha, como “o pior acordo jamais firmado pelos Estados Unidos”. Em entrevista coletiva depois de se reunir com o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, o presidente americano se mostrou disposto a chegar a um acordo que seja “bom para todos”.

Para alívio de Trudeau, Trump, que não havia falado muito sobre o comércio com o Canadá durante a campanha, centrando sua artilharia pesada contra o México, fez uma distinção bastante favorável entre os vizinhos do norte e do sul. Um repórter canadense francófono perguntou a Trudeau se ele tinha conseguido, na reunião, defender os laços comerciais com os Estados Unidos, e a Trump se ele considerava “justo” o comércio com o Canadá e se pretendia “mudanças grandes ou pequenas”.

“Nossa economia é muito dependente dos EUA”, reconheceu Trudeau, em francês. “Bens e serviços cruzam a fronteira todos os dias. Milhões de empregos e bons empregos”, são gerados por essa relação, assinalou o primeiro-ministro, para em seguida continuar em inglês: “Milhões de empregos e bons empregos também são gerados nos Estados Unidos. Continuamos a acreditar que temos de permitir o livre fluxo econômico e a integração de nossas economias”.

Demonstrando imensa sensibilidade política, Trudeau, cujo pai também foi primeiro-ministro do Canadá, arrematou, em inglês: “Ambos fomos eleitos comprometidos com a classe média de nossos países. Sabemos que trabalhando juntos asseguraremos uma integração contínua e efetiva”. Deu certo. Trump tomou a palavra e disse: “Concordo cem por cento. Nós vamos mexer nele (o Nafta), fazendo algumas mudanças, muito menos do que na fronteira sul, onde a relação tem sido muito mais injusta”. Mas acrescentou: “Vamos ter uma boa relação com o México. Eles entendem isso”.

Trump fez então referência a “bilhões de investimentos” anunciados pela Ford e pela General Motors nos Estados Unidos, como resultado das mudanças que ele vem introduzindo no ambiente de negócios — leiam-se promessas de desregulamentação e redução de impostos sobre pessoas jurídicas. Ele disse que se reuniu com os dirigentes da Fiat Chrysler, que também demonstraram o mesmo interesse, e citou o chinês Jack Ma, dono do Alibaba, império do varejo online. “Muitas pessoas estão querendo vir para os EUA. Vai ser um período muito estimulante para os EUA e para os trabalhadores dos EUA.”

O presidente voltou então para o tema México: “Nós vamos resolver isso, tornar isso justo, deixar todo mundo feliz. Isso é muito importante para mim”.

Antes de tratar de comércio, Trump respondeu uma pergunta sobre imigração — o outro grande calcanhar de Aquiles, tanto com o Canadá quanto com o México. “Temos de criar fronteiras para garantir que só entrem as pessoas que amam este país”, defendeu o presidente. “Eu amaria isso. Quero que as pessoas venham. Mas temos de manter as pessoas más de fora. Não queremos que nosso país tenha o tipo de problema que vemos não só aqui mas em outras partes do mundo todo”, disse ele, referindo-se implicitamente ao terrorismo islâmico.

Ao assumir em 2015, Trudeau estabeleceu como uma de suas prioridades acelerar a entrada de refugiados sírios, no calor dos massacres no país e da crise provocada na Europa pela avalanche de imigrantes. Logo depois que Trump assinou o decreto que baniu por tempo indeterminado a entrada de sírios, por 90 dias a de cidadãos do Irã, Iraque, Líbia, Somália, Sudão, Iêmen e da própria Síria, e a de todos os refugiados por 120 dias, Trudeau tuitou que os refugiados eram bem-vindos no Canadá.

Dois dias depois, seu ministro da Imigração, Ahmed Hussein, confirmou que o país acolheria os refugiados barrados nos Estados Unidos. Em seguida, o estudante de ciência política Alexandre Bissonnette, de 27 anos, seguidor de Trump, da líder ultra-nacionalista francesa Marine Le Pen e de um grupo xenófobo quebequense, abriu fogo numa mesquita do Quebec, matando seis pessoas e ferindo oito.

Nesta segunda-feira, Trudeau chegou a Washington determinado a evitar que a conversa com Trump degringolasse por causa desse tema. Foi o que aconteceu com o primeiro-ministro australiano, Malcolm Turnbull, que no dia 28 perguntou pelo telefone ao presidente americano se ele honraria um acordo firmado com Barack Obama pouco antes da sua eleição, que previa a troca de refugiados afegãos, iraquianos e de outras nacionalidades por salvadorenhos e guatemaltecos. Trump respondeu que tinha conversado com quatro governantes naquele dia e aquela era “de longe a pior conversa”, e acabou batendo o telefone na cara do primeiro-ministro da Austrália, um dos mais leais aliados dos Estados Unidos, que tem participado de todas as coalizões militares por eles liderados.

“Nós lutamos e morremos juntos na 1.ª Guerra Mundial, na 2.ª Guerra Mundial nas guerras da Coreia e do Afeganistão”, recordou Trudeau, com seu inglês perfeito, ao lado de Trump. “Houve momentos em que discordamos, mas sempre de forma respeitosa. O que os canadenses menos querem é que eu dê lições aqui, mas que reflita o ponto de vista canadense e que sejamos um exemplo positivo para o mundo.”

Mesmo que não quisesse, Trudeau, de 45 anos, que foi professor em Vancouver, deu uma lição de diplomacia: defendeu os valores canadenses, não se curvando perante o colossal vizinho do sul — uma preocupação recorrente da opinião pública do Canadá em reuniões como essa — sem ferir o narcisismo de seu suscetível novo amigo.

A tarefa não era nada fácil. Trudeau gozava de uma ótima relação com Obama, com o qual tem muito mais afinidade ideológica. A imprensa americana brincava que havia entre ambos um “bromance” (de brother, irmão).  O comércio com os Estados Unidos responde por 25% do PIB canadense. O mercado americano consome 75% das exportações canadenses. Salvar o livre comércio com os EUA é um desafio existencial tanto para a economia canadense quanto para a carreira política de Trudeau: os canadenses passaram a apoiar mais o Nafta depois da eleição de Trump. De acordo com pesquisa do Instituto Angus Reid publicada nesta segunda-feira, 44% acreditam que o acordo que entrou em vigor em 1994 beneficiou o Canadá. Em junho, essa fatia representava apenas 25%.

A missão de Trudeau é um pouco facilitada pela importância que o Canadá tem para os Estados Unidos, dos quais o Canadá é o segundo maior parceiro comercial (depois da China e seguido pelo México), com 575 bilhões de trocas totais, em 2015. Os EUA tiveram naquele ano um superávit de 27,1 bilhões de dólares nas trocas de serviços, e um déficit de 15 bilhões no comércio de bens.

Mais importante, do ponto de vista da doutrina de Trump: o Canadá é o maior destino das exportações americanas. Chrystia Freeland, ministra das Relações Exteriores canadense, salientou em reuniões com autoridades dos EUA que seu país é o principal importador de 35 Estados americanos. Segundo dados do Departamento de Comércio americano, a venda de bens e serviços para o Canadá gerou 1,7 milhão de empregos nos EUA (1,3 milhão na produção de bens e 394 mil no setor de serviços).

Numa amostra da integração das cadeias produtivas, os produtos vendidos e comprados de lado a lado pertencem basicamente aos mesmos segmentos: veículos, maquinário, combustíveis fósseis e alimentos.

De acordo com o especialista em pesquisas de opinião pública canadense Nik Nanos, o desafio de Trudeau nesse primeiro encontro era defender os interesses econômicos e os valores canadenses sem parecer subserviente: “Este encontro se trata mais de evitar desgastes do que tentar se engajar em algumas das grandes questões. É definitivamente a política de se abaixar (para evitar golpes)”, disse Nanos à agência Reuters.

“Você não precisa ser um gênio para ver que há marcantes diferenças entre eles”, analisou Stephen Kelly, professor da Universidade Duke (em Durham, Carolina do Norte) e ex-encarregado de negócios da embaixada americana em Ottawa. “Mas isso é hora de enfiar o dedo nos olhos dos outros? Eu diria que não. Em alguns sentidos, o presidente é um cara para quem relacionamentos pessoais podem ser ainda mais importantes.”

Na coletiva, Trump salientou que passou o fim de semana todo com o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, e que ambos “se conheceram muito bem”. Trudeau, que fez mudanças em sua equipe para melhor se adaptar ao novo presidente americano, e mandou vários emissários a Washington para preparar a visita, presenteou Trump com uma foto em preto e branco dele com seu pai, Pierre Trudeau. A foto foi tirada em 1981, quando Pierre, então primeiro-ministro, recebeu em Nova York o Prêmio Family of Man, concedido por uma entidade inter-religiosa.

Parece que Trudeau leva jeito para lidar com Trump. “Bom para todos”, como diria o presidente.

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