Sobrevivente do massacre

Ernesto Guerrero, na Escola Normal de Ayotzinapa, México

 “A polícia descarregou as armas em nós”

Lourival Sant’Anna (Texto, fotos e vídeo)

ENVIADO ESPECIAL – AYOTZINAPA, México

Ernesto Guerrero, de 23 anos, é um dos sobreviventes do massacre de Iguala, que resultou na morte de três estudantes e no desaparecimento de outros 43. No câmpus da Escola Normal de Ayotzinapa, onde ele cursa o primeiro ano de formação para professores em educação primária, Guerrero contou em detalhes o que se passou naquela noite de 26 de setembro. Seguidor da doutrina marxista transmitida na escola, ele pediu para ser filmado e fotografado com um mural ao fundo de Ernesto Che Guevara, líder da Revolução Cubana, seu xará e herói. Segue o seu relato:

No dia 26 de setembro, saímos daqui da Escola Normal de Ayotzinapa ao redor das 6 da tarde com destino a Iguala para a tomada de duas unidades (de ônibus). Costumamos tomar ônibus para transportar os estudantes para estágios em escolas distantes. Fomos em dois ônibus que já estavam conosco da empresa Estrella de Oro, um aproximado de 100 companheiros.  Um ônibus ficou antes, para fazer uma coleta, de cooperação voluntária que se pede aos motoristas, no caso para a marcha de 2 de outubro (para lembrar o Massacre de Tlatelolco, em 1968). O outro, no qual eu viajava, chegou a Iguala às 7 e meia da noite. Depois os dois ônibus se encontraram para irmos ao Terminal de Ônibus de Iguala. 

Tudo isso transcorreu de maneira pacífica, tranquila. Saímos do terminal sem nenhum conflito, não houve protestos, discussão, nada. Foi dito que fomos a Iguala boicotar o informe da Sra. María de los Ángeles (a primeira-dama, que apresentou naquela noite os resultados de seu trabalho de assistência social). Essa mulher não nos interessava. Eu sem sequer tinha conhecimento dela. O que ganhávamos em ir gritar palavras de ordem no seu informe? Nada. Em nenhum momento descemos no Zócalo (praça principal). Não fizemos escândalo. 

Saindo do terminal em direção à Perimetral (avenida na periferia de Iguala), em três ônibus, para voltar para a escola, passando pelo Zócalo, começaram as sirenes das patrulhas. Sinceramente, não pensei que fossem contra nós, que fossem nos agredir. Do Zócalo, saíram duas patrulhas atrás do terceiro ônibus. Imediatamente começaram a disparar. Em nenhum momento os policiais nos mandaram parar. Não quiseram falar conosco. 

Tínhamos de nos defender de alguma forma. Eu e outros cinco companheiros descemos do terceiro ônibus em movimento e começamos a jogar contra os policiais, que estavam poucos metros atrás de nós, as poucas pedras que havia, garrafas, o que encontrássemos na rua. Gritávamos para os policiais: “Somos estudantes. Por que disparam contra nós? Não temos armas”. Eles nos apontavam as armas e respondiam: “Queriam nos enfrentar, homenzinhos? Agora aguentem, veados!”

No início, era um tiro de cada vez. Depois começaram a descarregar as armas – uma chuva de balas. No começo, eram uns 15 policiais. Foram chegando mais patrulhas, e já eram muitos policiais. Alguém disse ao motorista do terceiro ônibus: “Feche a porta e não deixe passar mais ninguém”. Nós, que tínhamos descido, corremos para o primeiro ônibus. Havia muito trânsito de carros e os ônibus iam devagar. Íamos ao lado dos ônibus, para nos proteger, jogando pedras. 

Quando eu já estava no primeiro ônibus, íamos pegar a Perimetral quando atravessou uma patrulha da Polícia Municipal e bloqueou nossa passagem. Decidimos descer outra vez e empurrar a patrulha para abrir espaço. O primeiro a chegar à patrulha foi meu companheiro Aldo. Depois cheguei eu, e chegaram outros. Começamos a empurrá-la e começaram a descarregar as armas contra nós. Logo atingiram Aldo na cabeça. Ele caiu e se formou uma poça de sangue no chão. Gritei: “Acertaram o Aldo”. Outros colegas se aproximaram e tentamos carregá-lo, mas disparavam contra nós, tanto da frente quanto de trás, e tivemos de deixá-lo. Eu me joguei aonde estava o primeiro ônibus, para me proteger. Éramos uns 25 colegas atrás do primeiro ônibus. Quando ouvíamos os tiros, nos jogávamos. 

Chegaram mais policiais atrás e na frente. Eram umas 9 da noite. Os disparos duraram aproximadamente 15 minutos. Meus colegas do terceiro ônibus não desceram. A polícia os cercou, apontou as armas para eles e os empurraram para a calçada com as mãos na cabeça. Um policial se encarregou de dizer: “Você, você e você, subam (nas carrocerias das caminhonetes)”. As patrulhas fizeram duas ou três viagens com meus companheiros. Todos foram levados vivos, deitados nas carrocerias, uns em cima dos outros. Eram umas dez caminhonetes. Todas da Polícia Municipal. 

Depois chegou a ambulância e levou Aldo, que teve morte cerebral. Chegaram mais policiais e começaram a nos agredir verbalmente: “Já vão embora, veados? Subam em seu ônibus e caiam fora. Já vamos embora. Vão também, se não, vão se lembrar de nós. Não queremos vê-los em minha cidade”. Todos os policiais, sem mais nem menos, foram embora e nos deixaram lá. Subi no terceiro ônibus, e vi que tinha havido feridos lá. Na poltrona do motorista escorria sangue. Havia uma poça de sangue nas primeiras filas. O câmbio estava coberto de sangue. A polícia levou esses feridos para o hospital. 

A polícia levou os que aparentemente não sofreram nenhum ferimento. São os 43 que estão desaparecidos. Umas duas horas mais tarde, começaram a chegar os companheiros de Ayotzinapa, professores, gente de outras escolas normais, meios de comunicação, porque durante os disparos ligamos para organizações, para os professores. Enquanto falávamos com os meios de comunicação, fizeram novos disparos, de uma parte escura da Perimetral. Todos saíram correndo de novo. 

Havia dois mortos (na manhã seguinte, encontraram um terceiro, com a pele do rosto e os olhos arrancados) e muitos feridos no local. Recebi um sms de um companheiro: “Conterrâneo, me ajude, estou morrendo”. Então, mesmo com medo, meus companheiros tiveram de voltar ao local. Eu fui para a promotoria de Iguala. Lá foi o ponto de encontro. O subprocurador da República em Iguala foi a Varandilla, para onde são levados os presos, e o diretor de Segurança Pública, Felipe Flores (que está foragido, acusado de envolvimento), disse que não sabia de nada, nem dos tiros, nem de estudantes detidos.


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