Arte em Londres vai para o fundo da piscina

103 Janelas’ não tem texto e é encenada todas as noites em um ginásio abandonado

LONDRES – “Para onde você vai quando começa a chover? ” “Nós ainda não nos conhecemos.” Poderia ser um diálogo estranho se não fosse travado entre um homem e uma mulher nus, numa piscina vazia, para uma platéia curvada nas arquibancadas de um ginásio aquático.

Os atores estão lendo fragmentos de texto colhidos ao acaso de pedaços de papel que caíram do teto, numa performance dirigida pelo radical teatrólogo britânico Tom Geoghegan.

O cenário da peça é um antigo centro recreativo de Finsbury Park, no norte de Londres. O lugar tem cem anos, sobreviveu às duas Guerras Mundiais e a todas as outras intempéries, mas não ao pragmatismo dos novos tempos. Em 1991, o Conselho Regional fechou o ginásio, oferecendo ao bairro um outro, mais moderno. Mas, quando as autoridades se preparavam para demolir o velho prédio, sucessivamente reformado, os moradores protestaram.

O Conselho selou as portas e janelas do prédio com madeira, na esperança de que um dia a população esquecesse o ginásio e ele pudesse ser demolido. Geoghegan e sua companhia de teatro não estão cooperando. Eles obtiveram licença para reabrir e utilizar o espaço durante três semanas. Sem apoio de ninguém (“Tive dificuldade até para fazer as autoridades me ouvirem”, diz ele), o teatrólogo pôs abaixo os tapumes com as próprias mãos e refez a eletricidade do velho prédio para encenar sua peça, intitulada 103 Janelas.

O imenso complexo tinha de fato todas essas janelas, uma das coisas que mais impressionaram o artista quando ele começou a frequentar o ginásio, aos seis anos de idade. Todas as noites, antes de começar o espetáculo, a produtora Anna Hart deposita uma bola alaranjada de papel machê sobre cada um dos 17.500 azulejos da piscina principal. Quando os atores entram na piscina, iluminada com lâmpadas amarelas, começam a correr e rolar sobre o chão. O movimento das bolas faz um barulho parecido ao da água.

Não há script. O número de atores varia a cada noite, chegando até seis. O fio condutor são os trechos de texto colocados em bolsas instaladas no teto, que são puxadas pelos atores com a boca por um cordão que desce até a piscina. Os pedaços de papel caem sobre suas cabeças e eles começam a recitar. A repetição das frases transfigura seu significado, enquanto os atores criam e dão sentido ao diálogo.

“A noção do verdadeiro artista se perdeu no teatro moderno”, disse Geoghegan, em entrevista ao Caderno 2. “Eu busco resgatar o papel do performático como um artista, que cria, re-representa, redefine o trabalho, em vez de ser uma cópia de carbono, dependente do conceito de outros.” Geoghegan acha que as peças modernas geram uma frustração, principalmente nos mais jovens, que não têm envolvimento real com o teatro.

O espetáculo tem entrada franca, “para que as pessoas possam vir várias vezes e acompanhar o desenrolar do trabalho”, explica o teatrólogo. Geoghegan já trabalhou no teatro convencional, encenou vários clássicos, mas atualmente só faz esse tipo de performance. Antes de desbravar os Banhos de Hornsey Road, ele e a produtora Anna Hart envolveram uma torre velha na beira do Tâmisa com 20 mil bolas em forma de luas.

Nos fundos do centro recreativo, uma outra piscina coberta abriga uma instalação, Um Pequeno Buraco no Chão, do arquiteto Steve Fox. O chão da piscina foi dividido ao meio, coberto de um lado por grama e de outro por asfalto. Nas paredes do ginásio, em cada moldura de antigas janelas há uma foto. Todas as fotos são de canteiros de concreto cilíndricos (daqueles brancos, onipresentes também no Brasil), com lama dentro.

“Acho que isso resume um pouco a Grã-Bretanha”, disse Fox ao Caderno 2. “Você tem espaços de concreto que circundam fatias de lama”. Para o arquiteto, a paisagem urbana britânica é um reflexo da melancolia, do tédio e da falta de horizontes da população. Quem veio primeiro? “Acho que a paisagem e o estado de espírito se entrelaçam, e um alimenta o outro.” Quanto à pequena lama, é nela que o cidadão se esbalda obedientemente, cultivando sua grama, seu pequeno jardim, por entre as frestas da superfície cinzenta.

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