Em Londres, casa vira arte pelo avesso

A escultora Rachel Whiteread ganhou os prêmios de melhor e pior artista ao “emoldurar”um sobrado ao contrário

LONDRES – Quem nos últimos dias passeou calmamente pelos arredores de Bow, leste de Londres, e não costuma ler a seção de arte dos jornais, teve um choque ao passar pelo parque do bairro. De longe, parecia um disforme bloco de concreto, maciço e do tamanho de um sobrado.

De perto, a vista se atrapalhava. Havia algo errado com aquelas formas –tudo parecia estar ao avesso. E estava. De tão controversa, a obra House, da escultora Rachel Whiteread, lhe valeu os prêmios de melhor e de pior artista do ano, numa noite de gala dentro da Tate Gallery e de fuzuê do lado de fora.

Whiteread ganhou o Prêmio Turner, de 20 mil libras (US$ 30 mil), concedido pelos autodenominados Patronos da Nova Arte, que invariavelmente indicam artistas que eles próprios agenciam, ou cujas obras costumam comprar; e, pasmem, 40 mil libras, por ter sido a pior artista do ano. O prêmio ao avesso é dado todos os anos a um dos quatro vencedores do Turner, pela chamada Fundação K, criada por Bill Drummond e Jim Cauty, do grupo pop KLF. Numa furiosa performance, os “manifestantes” penduraram uma moldura sem quadro na grade da Tate Gallery. Dentro dela, as 40 mil libras, em notas.

Caso Whiteread não saísse do coquetel de sua premiação para vir buscar o “prêmio”, as notas seriam queimadas. Pouco antes do prazo final, a escultora, evidentemente mal- humorada, apareceu para pegar o dinheiro, que prometeu dar a “artistas que merecem”, sem precisar o que queria dizer com isso. As grades da Tate separavam conceitos opostos de arte.

House foi instalada à margem do parque, onde havia uma fila de casas. A prefeitura decidiu desapropriar a área e demoli-las . Todos concordaram com as residências alternativas que lhes foram oferecidas, com exceção do morador Sidney Gale. A casa de Gale permaneceu, enquanto o resto foi demolido. Aquele sobrado no meio do vazio inspirou Whiteread a construir House. Quando a família se mudou, resolvida a pendência, a escultora mandou encher a casa de concreto, e em seguida retirar a “casca”, ou seja, as paredes, as portas, as janelas e o telhado.

A prefeitura local deu a Whiteread cinco semanas para expor sua “moldura negativa”, como gostam de chamá-la os admiradores. Acontece que o lugar virou uma espécie de ponto de peregrinação, aonde acorreram artistas e demais curiosos, com máquinas fotográficas ou filmadoras. Todos queriam ver e registrar – porque efêmera – a mais famosa obra de arte da Grã-Bretanha do momento. Nas frias porém ensolaradas manhãs, grupos de crianças, com suas professoras, foram visitar House, para desenhá-la, descrevê-la, e, é claro, brincar em torno dela.

Um grupo de apaixonados por House moveu uma ação para impedir que o estranho monumento fosse demolido. Nem Whiteread concordou com isso. “Trata-se de uma recordação, a lembrança de uma casa que não está mais lá, e é preciso deixar que as memórias se apaguem”, recomendou a escultora, que se dedica a fazer grandes molduras – que até agora costumavam caber nos museus. “Quando concebi House, eu a visualizei apenas para um curto período.” Mesmo assim, Whiteread ajudou a organizar a petição para retardar a demolição, de modo que mais pessoas pudessem ver sua casa ao contrário. Finalmente, depois de quase dois meses de exposição, a casa foi demolida.

“Pra que isso”, perguntava, coloquialmente, uma pichação numa das paredes. “Por que não!”, defendia outra logo abaixo. Um manifesto grudado na casa, assinado por um certo Terry McGrenpra, que deixou o telefone, pedia a manutenção da obra. Depois de um esclarecimento do que se trata e de como ela foi feita, muito revelador para ao transeunte casual e o morador local, o texto filosofava: “O que restou é um monumento à domesticidade passada, um edifício rústico porém intrincado. Uma vez vista, ela faz com que você olhe para todas as casas de um novo jeitos.”

Claro que há interpretações ainda mais sofisticadas. Como a do crítico anônimo citado com ironia pelo jornal The Observer: “Um paradoxo tornado concreto, na medida em que é um monumento obtido do espaço nulo, uma coisa construída a partir da ausência das coisas.” Whiteread é meio reticente em relação à mensagem. “A técnica é tão importante quanto a declaração”, escapa. Já Sidney Gale, o protagonista da “domesticidade passada”, é cristalino: “Se isso for arte, eu sou Leonardo da Vinci.”

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