Venezuela: entre banheiros e ameaças

DELCY RODRÍGUEZ: para a chanceler, Serra “ se soma à conspiração da direita internacional contra a Venezuela ”/ Andres Strapff/ Reuters

Lourival Sant’Anna

Paralisado pelo protecionismo brasileiro e argentino, o Mercosul ficou conhecido por ter uma lista de exceções de produtos com tarifa zero maior do que aqueles que nela se incluíam. Agora, três de seus fundadores — ou melhor, dois e meio, já que a Argentina está em cima do muro, enquanto Paraguai e Brasil estão firmes — querem evitar que a Venezuela assuma a presidência de turno do bloco. Realmente, o Mercosul é o lugar das exceções. No momento em que o bloco deveria estar focado nas negociações com a União Europeia — que se arrastam há 20 anos — e com outros parceiros comerciais, é obrigado a mobilizar suas energias em um imbroglio a respeito de um país membro que não crê nos dois pilares que o sustentam: livre comércio e democracia.

Bem ao estilo chavista, a chanceler venezuelana, Delcy Rodríguez, apareceu sem ser convidada no Ministério das Relações Exteriores em Montevidéu, nessa segunda-feira, 11, na reunião restrita aos quatro membros fundadores. O desembarque intempestivo lembrou a época em que seu falecido líder, Hugo Chávez, telefonava já de seu avião para avisar o então presidente Lula que estava voando para Brasília, para bater papo. Até Lula, que precisava da amizade de Chávez e dos outros “socialistas” sul-americanos para acalmar seu público interno de esquerda, enquanto mandava ver na política econômica “neoliberal”, foi se cansando da informalidade do “compañero” caribenho.

Delcy foi recebida com toda a paciência pelo anfitrião Nin Novoa, ministro das Relações Exteriores do Uruguai, que quer seguir a norma da ordem alfabética e passar a presidência para a Venezuela, e pelo vice-chanceler argentino, Carlos Foradori, que lhe explicaram as posições de Brasil e Paraguai. A ministra venezuelana saiu dizendo que o subsecretário para América do Sul, Central e Caribe, Paulo Estivallet, e o chanceler paraguaio, Eladio Loizaga, tinham se “escondido no banheiro” para não se encontrarem com ela. A conversa descambou então para a escatologia, com Lizaga explicando que, se tinham ido ao banheiro, deve ter sido atendendo a uma “necessidade fisiológica”.

Delcy brincou que os representantes de Brasil e Paraguai deviam sofrer de “almagrite”, em referência ao secretário-geral da Organização de Estados Americanos (OEA), o uruguaio Luis Almagro, em campanha para suspender a Venezuela do órgão, por violação à sua Carta Democrática (chanceler no governo do ex-guerrilheiro José Mujica, Almagro dá uma no cravo outra na ferradura: denunciou o impeachment de Dilma Rousseff como “golpe”). “Esta é a má educação da direita da região, que pretende não reconhecer as normas de funcionamento do Mercosul”, sentenciou Delcy. Interessante a chanceler chavista falar em educação e em normas. Tanto um conceito quanto o outro, como de resto tudo na vida, é visto pelos chavistas pelo filtro ideológico.

A Venezuela entrou de supetão no Mercosul, em 2012, sem aderir às normas do bloco. Na verdade, foi empurrada para dentro pelas “presidentas” Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, depois de supender o Paraguai, acusado de violar a Carta Democrática, por ter feito o impeachment do presidente de esquerda Fernando Lugo, num procedimento do Senado que seguiu a Constituição paraguaia à risca. Dominado pela centro-direita, o Senado não havia referendado a entrada da Venezuela no bloco. A suspensão e entrada pela porta dos fundos da Venezuela foram uma traição ao Paraguai. Que agora dá o troco.

Na semana passada, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acompanhou o chanceler José Serra a Montevidéu, para tentar convencer  o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, a não entregar a presidência à Venezuela. Mas cada um sabe onde o calo aperta. Tabaré está premido por seu partido de esquerda, Frente Ampla. Mais moderado que Mujica, o presidente anunciou um plano de aumento de impostos e corte de gastos para o ano que vem. Como Lula no primeiro mandato, faz graça com a política externa, enquanto tenta manter a responsabilidade fiscal.

As gestões brasileiras enfureceram a irascível Delcy. “A República Bolivariana da Venezuela rechaça as insolentes e amorais declarações do chanceler de facto do Brasil”, escreveu a chanceler em sua conta no Twitter, repetindo a expressão “de facto” para reforçar a tese de que o impeachment de Dilma foi um golpe. “O chanceler de facto José Serra se soma à conspiração da direita internacional contra a Venezuela e viola princípios básicos que regem as relações internacionais.”

No melhor estilo do Itamaraty, o Brasil está tentando evitar um confronto e ganhar tempo — e como parte dessa tática Serra anunciou na semana passada que não iria a Montevidéu, porque tinha um compromisso na China (distraído, acabou não indo para Pequim, na segunda-feira).

A chanceler argentina, Susana Malcorra, também não foi a Montevidéu. Mas o caso dela é mais complicado. Em sua primeira entrevista coletiva como presidente eleito, em novembro, o argentino Mauricio Macri defendeu a suspensão da Venezuela do Mercosul se não soltasse os presos políticos e não permitisse a realização do referendo revogatório de Nicolás Maduro, conforme previsto na Constituição e defendido pela oposição, que já reuniu as assinaturas necessárias. Nos últimos meses, no entanto, Macri tem se omitido sobre o assunto. Como o governo de Barack Obama, o argentino parece acreditar que isolar os chavistas seja pior para os venezuelanos. Susana sonha com o cargo de secretária-geral das Nações Unidas, e não está muito a fim de se indispor com os governos de esquerda que restam na região: Uruguai, Bolívia, Equador, Nicarágua e Cuba.

Embora a presidência uruguaia expire nesta quarta-feira, 13, a ideia em Brasília é empurrar a transmissão para agosto, quando vencem os quatro anos dados para a Venezuela adotar as 1.100 normas comerciais e os tratados políticos do Mercosul, que versam sobre democracia e direitos humanos. Até aqui, os venezuelanos aderiram a cerca de 500, faltando a Tarifa Externa Comum, defesa da concorrência e outras bases do bloco. Presos políticos não combinam com o Protocolo de Assunção sobre Compromisso com a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos do Mercosul, assinado em Assunção, em 20 de junho de 2005, para ficar em outro exemplo.

“Do ponto de vista político, é melhor que a Venezuela volte ao status de observador”, sugere o embaixador Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), de São Paulo. Com esse status, os venezuelanos não poderiam presidir o bloco, e pela ordem alfabética os próximos seriam os argentinos. “O Brasil deve argumentar que é a Venezuela que está em falta com o Mercosul, e não o contrário”, continua Barbosa, interlocutor frequente de Serra. “Não é preciso expulsar nem punir, apenas reconhecer que o protocolo de adesão não foi cumprido.”

Barbosa depôs no Senado em 2012 contra a entrada da Venezuela. “Depois que falei, o governo (Dilma) usou o rolo compressor e aprovou”, recorda ele. “Politicamente, foi uma confusão em que se meteram.”

Falando em nome do governo brasileiro em Montevidéu, Estivallet avançou na direção de assumir a dimensão política desse erro:  “Para o governo do Brasil, está claro que há um problema de política na Venezuela que põe em dúvida se as credenciais neste momento para assumir a presidência são as que se esperam”.

Barbosa considera que o imbroglio venezuelano não afeta as negociações com a União Europeia, porque elas são conduzidas apenas pelos membros fundadores: Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Mas é possível que o tema venha à tona, nem que seja para cutucar o Mercosul, nos momentos de impasses. No dia 7, o chefe da Divisão de América do Sul da UE, o holandês Adrianus Koetsenruijter, disse em Madri: “A situação na Venezuela está difícil. Vemos como um possível obstáculo para essa negociação (com o Mercosul)”.

Enquanto Delcy vociferava em Montevidéu, no seu país os sinais vitais da livre iniciativa e do funcionamento da economia continuavam enfraquecendo. O Citibank anunciou que encerraria suas atividades na Venezuela e a Kimberly-Clark fechou sua fábrica de papel higiênico — um bem já escasso no país. Mais um motivo para a obsessão de Delcy com banheiros.

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