Duzentos anos depois, caminhamos para a ‘Paz Perpétua’?- 29/11/1997

Democracia, livre comércio e formação de blocos são elementos do teorema de Kant

Europa, 1789. As estruturas políticas se convulsionam. A França é apenas o epicentro do terremoto. Todo o solo europeu treme e abala irremediavelmente os velhos alicerces. Na pequena Königsberg, Prússia, o caráter universal daqueles abalos não passa despercebido ao olhar do professor Immanuel Kant. Seis anos depois, publica À Paz Perpétua, na qual a crença utópica em um futuro sem guerras e de liberdade é elevada à condição de sistema, fundado no solo – naquele instante tão frágil e incerto – da democracia.

Europa, 1989. Exatos 200 anos depois, a Europa volta a tremer. O epicentro, dessa vez, é a Alemanha. A Queda do Muro de Berlim é o ponto de partida de uma revolução – já não violenta – que lança por terra um absolutismo índice 2, intitulado ditadura do proletariado. Seis anos depois, no bicentenário do livro de Kant, filósofos no mundo inteiro se reuniram para refletir sobre a atualidade do projeto da paz perpétua, à luz do fim da guerra fria e do florescimento das novas democracias. 

O Brasil teve o seu colóquio em Porto Alegre, reunindo alguns dos maiores especialistas em Kant, entre alemães, argentinos e brasileiros. O resultado acaba de sair em livro trilíngüe, Kant e a Instituição da Paz (Editora da UFRGS), coordenado pelo professor Valério Rohden, presidente da Sociedade Kant Brasileira. Em duas seções de entrevista pelo telefone, de Porto Alegre, Rohden falou ao Estado sobre o colóquio, sobre o projeto de Kant e sobre a visão que tem de sua atualidade. 

Em sua À Paz Perpétua, Kant argumentou que o mundo caminharia para um estágio de desenvolvimento e de interdependência, no qual todos os conflitos seriam resolvidos pela via pacífica, uma vez satisfeitas três condições: que todos os regimes fossem democráticos, de modo que a vontade do povo, que não quer a guerra, prevalecesse sobre a dos governantes, que buscam vantagens nela, até porque suas vidas não correm risco iminente; que essas “repúblicas” se unissem numa liga mundial de nações soberanas, sob um arranjo jurídico que garantisse a 

estabilidade; que essa nova ordem moldasse um cidadão cosmopolita, despido de paixões nacionalistas. 

Nos dois séculos que nos separam da publicação de À Paz Perpétua, o projeto kantiano se expôs a duras provas. Em contraste com as Guerras Napoleônicas, com a 1.ª e a 2.ª Guerras Mundiais, com as atrocidades e os autoritarismos, a visão kantiana pareceu um delírio febril. Durante a guerra 

fria, o chamado equilíbrio do terror, ou seja, a capacidade das duas superpotências de aniquilar o planeta, como fator de dissuasão para uma guerra, levou muitos filósofos a pensar, amargamente, que a paz perpétua se realizaria num “cemitério da humanidade”.

E hoje? A democracia parece prevalecer, não só como único regime defensável e aspiração universal, mas como realidade na maioria dos países, apesar dos muitos graus de consolidação e estágios de aperfeiçoamento. Mais que isso, a democracia está vinculada à preponderância das leis do livre mercado, que conduzem o mundo à globalização e, portanto, à interdependência. 

Uma federação mundial de repúblicas, ainda não temos. A Carta das Nações Unidas reproduziu a formulação kantiana, assim como muitas Constituições nacionais – até mesmo a brasileira, quando se compromete, logo no preâmbulo, com a solução pacífica das controvérsias, na ordem interna e internacional. Mas a ONU, em cinco décadas, tem sido um fiasco, como garantidora da paz. 

De maneira localizada, no entanto, existem experiências bem-sucedidas de arranjos jurídicos dentre nações, fincados na interdependência. A União Européia é o exemplo mais acabado. Uma guerra entre dois de seus membros é inimaginável. “Relações econômicas se transformam em relações jurídicas e sociais, que favorecem o inter-relacionamento cultural e humano”, observa Rohden. “Por um mecanismo interno, a interdependência se eleva para outras esferas.”

O professor se debruçou sobre o exemplo do Império Romano, em que “a interpenetração cultural se fez sobre a base de relações de respeito pelos dominados”. Em sua época, Kant já se entusiasmava com a forma como o comércio fomentava contatos entre os povos.

É bem verdade que questões comerciais levaram a muitas guerras. Mas é igualmente verdadeiro que a estabilidade política propiciada pela democracia, a previsibilidade jurídica caracterizada pelo Estado de Direito e a solução pacífica dos conflitos favorecem o bom funcionamento do mercado. 

Rohden e outros estudiosos presentes no colóquio se mostram animados com a maneira como os blocos econômicos não só preservam a paz em seu interior, como também fomentam a democracia fora deles.

 

No início da década, a Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa lançou a política de condicionar a ajuda econômica para países pobres à instituição de regimes democráticos. O número de regimes democráticos na África pulou de 4 para 25. No âmbito do Mercosul, recentemente, a intervenção diplomática do Brasil e da Argentina foi decisiva para o fracasso de uma tentativa de golpe militar no Paraguai.

Persistem obstáculos importantes à realização do projeto kantiano. Em seu paper, Ernst-Otto Czempiel, da Fundação de Hessen para Pesquisas sobre a Paz e os Conflitos e professor da Universidade Frankfurt, analisa os filtros que se interpõem entre a aspiração popular à paz e a tomada de decisões na área de política externa.

Grupos de interesse, por exemplo, vinculados à indústria bélica, são capazes de influenciar governos e parlamentos. Além disso, um pressuposto para a constituição de uma opinião pública pacifista é o acesso a informações confiáveis. Distorções da realidade, pela mídia, podem ocorrer até nas democracias mais avançadas que se conhecem hoje. Rohden lembra a Guerra do Golfo, convertida em espetáculo pela CNN, a ponto de glamourizar a morte e a destruição. Na última crise, recém-encerrada, algumas vozes no deserto foram aos jornais para lembrar que “bombas inteligentes” também matam gente. 

Enquanto os arranjos jurídicos estiverem circunscritos a blocos, seu efeito será ambivalente: de pacificação interna, mas também de exclusão. Há o risco evidente de polarização e de acirramento de tensões entre os membros do bloco e os que ficam à sua margem, como também entre os próprios blocos. Por isso, Kant divisou uma federação mundial.

Fazemos uma pausa na entrevista e deixamos as idéias descansar, como um vinho recém-aberto. No dia seguinte, o professor atende com um tom preocupado. Dá um passo atrás para discutir a própria entrevista. “A filosofia fornece idéias gerais e é insuficiente em análises de tipo conceitual”, pondera Rohden, usando categorias kantianas, que atribuem as idéias à razão, no nível dos princípios, e os conceitos ao entendimento, no nível do conhecimento empírico. “Precisamos de outros instrumentos de verificação e de análise para emitir juízos sobre a realidade.”

O professor não quer ver categorias filosóficas, como o teorema da paz perpétua, expostas diretamente à confirmação ou ao confronto com dados empíricos. A entrevista assimila a 

advertência. Mas é o próprio professor que se encarrega de dissipar a perplexidade diante do abismo entre as idéias e o mundo.

O tema é a dubiedade da globalização, análoga à da formação dos blocos: em seu movimento de expansão e de inclusão, ambas se tornam laboratórios para a fórmula kantiana; mas a disparidade entre o que elas incluem e o que elas relegam à periferia é crescente, aumentando o potencial de conflito.

O professor recobra o entusiasmo: “Mas, se não acreditássemos que essas relações econômicas envolvem outros componentes e há uma evolução para a moralidade, se assumirmos perspectivas empíricas e não tivermos o olhar para diversos fatores, se não virmos filosoficamente idéias presentes no mundo, cairemos na decepção e no desespero.”

Rohden cita o exemplo do escritor alemão Hans Magnus Enzensberger, que, em Guerra Civil (Companhia das Letras), se mostra amargo e desiludido com o recrudescimento dos nacionalismos no pós-guerra fria. 

Há, então, um olhar filosófico para o mundo que é legítimo. O próprio Kant se entusiasmou com a Revolução Francesa, um fato de sua época, e viu nela indícios para uma reflexão filosófica. Foi a sua inspiração. É um esforço legítimo, afinal. A entrevista se encerra quando se legitima.

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