Fukuyama: ‘Liberalismo é única alternativa válida’

O filósofo diz que sua tese sobre o ‘fim da história’ teve pouco apelo nos EUA porque o governo Bush não está em sintonia com os fatos.

Os Estados Unidos estão sempre seis meses atrás dos acontecimentos. A afirmação é do filósofo americano Francis Fukuyama, que assessorou o Departamento de Estado por três anos: entre 1981 e 1982 e em 1989. Ao comentar a pouca influência que sua tese sobre o fim da História teve sobre a política externa americana, Fukuyama, hoje pesquisador da importante Rand Corporation, descreve o governo em Washington como inerte e preso ao passado.

Apesar dos atropelos, Fukuyama reafirma a teoria de que o liberalismo democrático é um sistema definitivo a ser apenas aperfeiçoado, e portanto a História acabou. A premissa de Fukuyama é a mesma do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): o homem tem buscado não só a sobrevivência e o prazer, mas também o reconhecimento de seu valor. Em nome desse reconhecimento, subjugou seus pares. Mas, ao alcançar seu objetivo, sentiu-se insatisfeito pelo valor nulo do reconhecimento de gente escravizada (simbolicamente ou de fato).

Com seu fundamento de igualdade universal, a Revolução Francesa destruiu o princípio da dominação, e Hegel – como Fukuyama – vislumbrou um mundo em que os homens não lutam pelo reconhecimento dos mais fracos, não buscam um novo sistema e portanto não fazem mais História. O ensaio O Fim da História?, escrito há três anos, deu origem ao livro O Fim da História e o Último Homem, traduzido em 14 línguas, e que a editora Rocco lança no Brasil. Fukuyuma, 39 anos, veio para o lançamento, e concedeu esta entrevista ao Estado.

Estado – Se pudesse voltar ao verão de 1989, sabendo o que sabe hoje, o sr. escreveria de novo que História acabou?
Francis Fukuyama
 – Certamente. Nos três anos desde que escrevi o artigo original, os fatos, confirmaram minha tese. Em 1989, eu nem imaginava que a URSS se dissolveria, que o Partido se tornaria ilegal, que o comunismo entraria em colapso, dando lugar a uma ordem instável, porém democrática. Por outro lado, talvez o nacionalismo tenha se tornado mais forte do que eu esperava no antigo bloco soviético. Mas não creio que isso negue minha teoria, porque o nacionalismo no Leste Europeu não é um fenômeno uniformemente negativo. No Báltico, por exemplo, tem sido um importante aliado da democracia. Não previ também o que ocorreria na Iugoslávia. Mas no essencial nada disso modificou minha visão.

Estado – Por que as pessoas não estão fazendo História na ex-lugoslávia?
Fukuyama
 – A verdadeira questão é se o que está acontecendo na Iugoslávia é um evento independente ou se indica o futuro de toda a região. Acredito que a intensidade do conflito seja algo especifico da Iugoslávia, um país onde milhões de pessoas morreram nesse tipo de luta há 50 anos, na 2ª Guerra Mundial. Agora, eu nunca afirmei que haveria uma transição uniforme e universal para a democracia. O que eu disse é que há uma clara tendência nessa direção. A longo prazo o liberalismo representa a única alternativa válida, mas todo país terá seus obstáculos. Acho que veremos emergir na região uma democracia de estilo europeu ocidental na próxima década.

Estado – As pesquisas mostram muita gente com saudade do regime comunista, por causa das dificuldades vividas nessa transição.
Fukuyama 
– Certamente. Mas é extremamente improvável que alguém tente restabelecer a ordem stalinista. Na Rússia, por exemplo, as pessoas estão muito descontentes com o colapso da economia. Querem um governo forte para restaurar a lei e a ordem básicas e tentar recuperar a economia. Mas acho muito mais provável que assuma o poder algum tipo de regime nacionalista do que comunista. A longo prazo, deverá ser introduzida a modernização que o povo deseja.

Estado – Em seu livro, o sr. expressa dúvidas de que os homens possam se acomodar à situação de serem reconhecidos por seus iguais. O senhor tem notado alguma tendência nas sociedades liberais em reinstalar a desigualdade, paraobter reconhecimento como superior?
Fukuyama 
– Não, acho que a Europa Ocidental, o Japão e os EUA já se tornaram profundamente burgueses. Não há significativa nostalgia pela dominação, ou um descontentamento que fizesse ressurgir um Hitler. Isso tem sido muito mais forte noutras partes, como Saddam Hussein no Iraque ou Slobodan Milosevic na Sérvia. O desejo de prosperidade e paz é bem mais profundo.

Estado – Não há um sentimento de inferioridade dos americanos em relação ao Japão?
Fukuyama 
– Sem dúvida.

Estado – Isso não sugere um relacionamento desigual no interior da sociedade liberal?
Fukuyama
 – O nacionalismo clássico do século 19 foi transmitido para o que poderíamos chamar de um tecno-nacionalismo, a competição econômica como a que se dá entre os EUA e o Japão, quem controlará a maior parte da melhor tecnologia. Os americanos estão incrivelmente obcecados com o Japão. A longo prazo, acho que é saudável. A competição com o Japão forçou os EUA a olharem para si mesmos e se tornarem mais críticos em relação a seu sistema educacional.

Estado – Entre o Hemisfério Norte e o Sul, não há uma relação de dominação e de reconhecimento do Norte como superior?
Fukuyama 
– A forma de dominação entre senhor e escravo foi amplamente abolida nas relações internacionais. A dominação assume muito mais as formas econômicas. E em muitas partes da África, o problema não é nem a dominação, mas ser totalmente ignorado. Ser dominado pelas nações industriais implica pelo menos algumas responsabilidades e interesse.

Estado-O mundo não está agora polarizado entre o Norte e o Sul?
Fukuyama
 – Acho que a linha divisória entre o Norte e o Sul é móvel. Nas duas últimas gerações várias partes da Ásia saíram do Terceiro para o Primeiro Mundo. Malásia, Cingapura, Tailândia, Taiwan, Hongcong, todos eram subdesenvolvidos até a 2ª Guerra Mundial, e hoje são potências tecnológicas que concorrem com os EUA. Isso significa que pertencer ao Terceiro Mundo não é um destino inexorável.

Estado – O sr. encontra hoje países que se ajustam ao modelo da sociedade liberal pós-histórica?
Fukuyama
 – Os que se encaixam nessa categoria são naturalmente os paéses da Comunidade Européia, os Estados Unidos, Canadá, Japão – democracias estáveis com economias orientadas pelo livre mercado.

Estado – Não há luta de classes nesses países?
Fukuyama
 – Nada no sentido do marxismo clássico. Há classes sociais nos países desenvolvidos, mas elas tendem a ser muito mais fluidas. Você simplesmente nunca vai abolir as classes, ou as diferenças entre ricos e pobres, porque existe uma divisão do trabalho, e porque as pessoas têm diferentes talentos e habilidades. O que você pode abolir é a permanência das classes, criando a oportunidade de mobilidade social, e me parece que esse é o objetivo das democracias liberais. É por isso que a educação é tão importante: ela é o meio para mudar de uma classe para a outra numa economia moderna.

Estado – A recessão nos EUA e mesmo no Japão não indica a possibilidade de fracasso?
Fukuyama
 – Não. Basta lembrar o que foi a Grande Depressão nos anos 30. Em todo lugar no mundo desenvolvido as pessoas estão descontentes. Na Itália, na França, nos EUA, estão votando contra os partidos no poder. Muito disso tem a ver com a recessão. Mas há uma diferença entre estar insatisfeito com personalidades no poder, com políticas especificas, e querer mudar o sistema como um todo. E eu não vejo este último desejo no mundo desenvolvido.

Estado – Do ponto de vista de Hegel, a História já linha acabado. Mas então vieram Hitler e Stalin para mostrar que ainda não era o caso. Quais as chances de o mesmo ocorrer com sua teoria no futuro?
Fukuyama
 – É absolutamente certo que pode haver grandes obstáculos ao progresso da democracia, como nos anos 30. Mas acho que no mundo como um todo as democracias se expandiram rapidamente, e que agora entramos num período de retração. É o que começamos a ver no Peru, Haiti, etc. Muitos paises não têm condições de sustentar uma democracia estável. Mas estou tentando ver isso de um ponto de vista muito mais “olímpico”. E a longo prazo, a idéia da democracia sobreviveu a Hitler e a Stalin.

Estado – O nacionalismo, racismo e fundamentalismo são ameaças?
Fukuyama
 – Não. São os maiores concorrentes, mas não acho que serão tão fortes. É preciso separar esse tipo de nacionalismo extremo da Iugoslávia, ou da ex-URSS, que não é uma questão importante na Ásia ou na América Latina. E mesmo no Leste Europeu, está localizado. Também o fundamentalismo é um problema dos 40 países muçulmanos, mas que não tem apelo fora dos já islâmicos.

Estado – Racismo nos EUA?
Fukuyama
 – A única grande questão política hoje nos EUA éo aborto. Acho que o racismo setornou particularmente agudo na Europa Ocidental.

Estado – Que influência sua tese teve sobre o governo americano?
Fukuyama
 – Relativamente pouca. Há muitas coisas antigas no governo Bush. É um governo que estava muito acomodado à guerra fria. Quando a guerra fria começou a acabar, houve muita resistência, não porque eles gostassem do comunismo mas porque era muito confortável lutar contra a URSS. E foi duro para eles perceber essas rápidas mudanças. O governo dos EUA está sempre seis meses atrás dos acontecimentos. Primeiro houve suspeitas de Gorbachev quando não devia haver, depois de Yeltsin, queriam manter a Iugoslávia unida, assim como a União Soviética…

Estado – …ajudaram o Iraque pouco antes da guerra…
Fukuyama
 -…e a China.

Estado – Por que tantos erros?
Fukuyama
 – Em parte é por inércia. As pessoas têm dificuldade em se adaptar. Além disso muita gente no governo é da época de Henry Kissinger, tem uma visão de Realpolitik. Acreditam que poder é muito mais importante do que ideologia. Não importava que a URSS estava se democratizando, se ela continuava representando um perigo para os EUA. Havia muito mais interesse em estabilidade do que numa mudança democrática revolucionária.

Estado – O que os EUA deveriam estar fazendo agora, que não estão?
Fukuyama
 – De maneira geral acho que os EUA deveriam dar muito mais atenção a questões econômicas do que estratégicas ou militares. Há graves problemas como o fracasso do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) e o Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta). A liderança política não dá atenção a isso. Outra coisa importante é saber como as diversas regiões do mundo vão se organizar em termos políticos e de defesa. Por exemplo, neste momento há uma situação anômala, na qual os líderes da Ásia e da Europa, Japão e Alemanha, não são potências militares, e têm influência política muito inferior a sua importância econômica. Mas isso é passageiro, e os EUA precisam se preparar para as mudanças. Finalmente, é preciso dar apoio político e econômico ao surgimento das democracias, por exemplo na América Latina.

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