A América de Bush: unilateral e protecionista

Essa é a síntese dos sinais emitidos nesses 14 meses de governo, na interpretação do ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia

RIO – Em 14 meses de governo, George W. Bush mostrou a que veio. No âmbito do comércio exterior, o abismo entre o discurso liberal e a prática protecionista se alargou. A ponto de Bush lembrar outro republicano, William Taft, que, depois de eleito, em 1909, sobre uma plataforma liberal, introduziu um aumento de tarifas que contribuiu para a Grande Depressão.

Na esfera política, Bush-filho e seus principais auxiliares, remanescentes do governo de seu pai, não fazem grandes esforços para dissimular a convicção de que os Estados Unidos podem resolver seus problemas no mundo sozinhos. Em síntese: protecionismo e unilateralismo voltaram à moda na Casa Branca. E no Congresso.

É assim que o ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia interpreta sinais tão diversos como a adoção de salvaguardas para o aço americano, a maneira de lidar – ou de não lidar – com as crises na Argentina e no Oriente Médio, até episódios isolados, como a campanha do governo americano para derrubar o embaixador brasileiro José Maurício Bustani da direção da Organização para Proscrição de Armas Químicas.

Lampreia, que deixou o Ministério das Relações Exteriores em janeiro do ano passado, recebeu o Estado no seu gabinete na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), onde preside o Conselho Empresarial de Relações Internacionais.

Estado – É um sinal dos tempos que o presidente social-democrata de um país em desenvolvimento, como Fernando Henrique, no seu debate com o presidente republicano da maior potência mundial, cobre dele que seja liberal no comércio exterior?

Luiz Felipe Lampreia – De fato. O que era consenso nos Estados Unidos hoje certamente não é mais. Era malvisto a pessoa ser protecionista. Hoje, muitos setores da sociedade americana, incluindo o Congresso, são claramente protecionistas, de maneira que os EUA não podem mais ser considerados um país fiel ao ideário do livre comércio, que vem da Inglaterra e da Escócia do século 18, do qual foram campeões durante muito tempo e também opositores durante um tempo: não vamos esquecer da Emenda Taft, modificação radical na política de tarifas, que foi uma das principais causas da Grande Depressão, nos anos 30. Agora de novo há uma série de casos de protecionismo forte.

Estado – Nos EUA, existe um histórico balanço entre um discurso liberal e uma prática protecionista. Nesse ano e pouco de Bush, para que lado a balança está pendendo?

Lampreia – O episódio do aço responde à sua pergunta claramente, porque se tratava aí, de um lado, de fazer vingar essa mensagem a favor do livre comércio. De outro, considerações políticas muito sérias, importantes, sem dúvida nenhuma, e portanto proteger o aço, mesmo que à custa de um conflito comercial grave com a União Européia, com o Japão e com outros países. Acho que o episódio todo é muito infeliz porque é uma área muito sensível e importante para o mundo todo. A mensagem que fica é que os EUA são a favor do livre comércio desde que não contrarie seus interesses nacionais. Ou seja, o livre comércio é bom para os outros, mas para os EUA, só de acordo com um menu que eles escolham. Isso é um mau sinal, assim como tinha sido um sinal preocupante que na Câmara de Representantes a votação da Autoridade de Promoção Comercial se tenha dado por um único voto, e mesmo assim depois de ter sido pendurada toda sorte de adereços para favorecer os interesses protecionistas. Infelizmente, aquilo que parecia um quadro muito favorável quando da aprovação do lançamento de uma nova rodada, agora claramente está nublado por esses fatos.

Estado – Geralmente o protecionismo é justificado pela questão do emprego. Nesse caso, o lobby contra a adoção dessa proteção argumentava que ela destruiria mais empregos do que geraria. Foi uma decisão não tão pragmática, mais ligada a algum estado de espírito nos EUA?

Lampreia – Foi uma decisão política. Uma das coisas fundamentais para a eleição de George W. Bush foi o fato de que em alguns Estados do centro-leste ele conseguiu bater os democratas, que eram donos do território havia muitas eleições. Este é um ano eleitoral (no Congresso) e dentro de três anos vai haver eleição presidencial, em que certamente ele será candidato à reeleição. Ele levou em conta os votos eleitorais da Pensilvânia, de Ohio, Indiana, West Virginia, que são decisivos.

Estado – Daí por que o secretário do Tesouro pôde dizer que era contra a medida: não tinha sentido no raciocínio econômico?

Lampreia – Exato. Muita gente foi contra, incluindo o presidente do banco central americano, Alan Greenspan.

Estado – Cinco empresas derrubaram essa semana na Justiça um imposto de importação do suco de laranja que a Flórida cobrava havia muito tempo. Uma coisa tão flagrante não poderia ter sido detectada antes?

Lampreia – Nós conhecíamos essa situação havia algum tempo. Apenas as empresas até aqui não tinham decidido questionar na Justiça a legalidade desse imposto estadual. Mas estamos nos batendo pelo suco de laranja há muitos anos. Eu próprio fui chefe da delegação brasileira na Rodada Uruguai e nossa prioridade número 1 era o suco de laranja. O presidente da Associação Brasileira dos Exportadores de Cítricos, Ademerval Garcia, é testemunha de que lutamos ferozmente para reduzir a tarifa de suco de laranja, e na Europa até conseguimos. Não conseguimos nos EUA porque o lobby ali é poderosíssimo. Agora, eles certamente vão apelar. Resta ver se se vai conseguir até o fim na Justiça americana derrubar essa medida. Ela é escandalosamente contrária à OMC, na medida em que dá tratamento a um produto importado diferente ao que dá a um nacional. A regra fundamental do comércio é que se pode aplicar tarifas na alfândega. Quando entra no país, não se pode tratar os dois desigualmente.

Estado – O novo secretário de Estado adjunto para a América Latina, Otto Juan Reich, no seu discurso de posse, mencionou Cuba, Colômbia, Haiti, mas ignorou o Brasil e a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Brasil e Alca parecem não estar entre as prioridades dos EUA?

Lampreia – Na prioridade, naturalmente sempre estará. Da visita do representante de Comércio do governo americano, Robert Zoellick, para mim, ficou a conclusão de que, antes da Alca em si, eles vão dar prioridade os acordos bilaterais com uma série de países da região. Com o Chile, já está em marcha, com o Uruguai, também, já assinalaram que vão iniciar um acordo, quem sabe a Colômbia, os centro-americanos, enfim, a idéia é ir adiantando o serviço e fazendo essas costuras bilateralmente. O embaixador Zoellick não fez muita cerimônia ao dizer que, ‘se o Brasil não quiser, tudo bem, nós vamos adiantando o nosso expediente’.

Estado – Para o Brasil, não interessa um acerto bilateral?

Lampreia – Certamente, não. Um acordo regional já é complicado. Há um desequilíbrio muito grande. O poder dos Estados Unidos é tão imenso… A indústria de papel e celulose americana, por exemplo, é 10, 12 vezes maior que a brasileira. Em qualquer setor, você vai encontrar alguma coisa do gênero. Então, mesmo dentro da Alca, já há esse desequilíbrio. Se fizermos bilateral, 1 a 1, a vantagem deles é muito grande.

Estado – As chances de se chegar a um acordo para a formação da Alca estão se reduzindo gradualmente?

Lampreia – Não sei se estão se reduzindo, mas não creio que neste momento seja a principal preocupação do governo americano. Uma discussão sobre a Alca acaba trazendo à tona os problemas dos setores sensíveis americanos. Evidentemente os EUA não podem se sentar numa mesa de negociação da Alca e excluir tudo o que é sensível: aço, suco de laranja, têxteis, açúcar e tudo o mais que eles protegem. E aí, não haveria conversa.

Estado – O secretário do Tesouro americano, Paul O’Neill, associou o juro alto do Brasil, entre outras coisas, à corrupção. O presidente Fernando Henrique está tentando argumentar que existem dois pesos e duas medidas na definição de juros para países centrais e países periféricos. Esse discurso de O’Neill sugere uma dificuldade quase intransponível em convencer os EUA a adotar um critério diferente na definição de política de juros pelos organismos multilaterais?

Lampreia – Não, acho que aí é uma coisa mais pessoal. O sr. O’Neill, embora tenha aparentemente – eu não o conheço pessoalmente – uma boa experiência com o Brasil, como presidente da Alcoa que foi, de vez em quando diz coisas um tanto brutais, um tanto destemperadas. Já disse em relação à Argentina (à revista The Economist, por exemplo, O’Neill disse que a Argentina não tem “uma indústria exportadora propriamente dita”, que os argentinos “gostam disso” e que “ninguém os forçou a ser como eles são”), agora em relação ao Brasil. Eu acho que às vezes ele escorrega um pouco no seu linguajar, que vai além do que um ministro de Estado deveria dizer a respeito de outro país.

Estado – É possível traçar uma distinção entre democrata e republicano, Bill Clinton e Bush, ou existe muito de razão de Estado nisso tudo?

Lampreia – O senso comum era o de que os democratas eram mais protecionistas, porque eram mais ligados aos sindicatos, aos grupos de interesse. O caso do aço mostrou que não é bem assim. Houve, durante o último ano do governo Clinton, pressão fortíssima para que adotasse salvaguardas, e ele não fez isso. O mesmo se revela nas discussões em torno da Autoridade para a Promoção Comercial. São coisas mais funcionais do que partidárias. Dependem dos grupos respectivos e das circunstâncias, e não mais da ideologia de um partido.

Estado – O que o caso do embaixador Bustani diz a respeito dos EUA e do governo Bush?

Lampreia – Acho que é mais uma demonstração do unilateralismo do governo Bush. Depois do 11 de setembro, houve a ilusão de que o governo Bush ia se sensibilizar mais com a necessidade de trabalhar em conjunto com outros países, para combater o terrorismo. Mas, depois disso, já ficou patente que a administração Bush é composta de pessoas que são fundamentalmente unilateralistas, que acham que os EUA têm de acabar de fazer o que for do seu interesse sozinhos e têm capacidade de ganhar as ‘paradas’ que se apresentarem e, se for necessário que isso represente um atropelamento até de países amigos, aliados, eles farão. É tão simples quanto isso. Acho até que o modo como as coisas ocorreram no Afeganistão, relativamente bem do ponto de vista militar, para os EUA, mais rapidamente do que se podia pensar, reforçou mais essa convicção que existe em Washington, no Pentágono, na Casa Branca, de que os EUA podem tudo. Transpassado para esse caso, é a manifestação da mesma coisa.

Estado – O governo Clinton, que o sr. teve de enfrentar, era uma ‘parada’ menos dura?

Lampreia – O governo Clinton apostou mais claramente na cooperação e no diálogo internacional. Seja para ajudar países em crise financeira, como foi o caso do Brasil – o apoio americano na crise da desvalorização do real, em 1999, foi fundamental; sem ele, teríamos tido um problema muito mais grave. Por outro lado, eles também fizeram um esforço muito maior pelo diálogo no Oriente Médio, enfim, em várias situações de crise no mundo e na própria área de livre comércio. Não que o governo Clinton fosse composto de anjos e o Bush, de demônios. Mas o governo Clinton foi muito mais comprometido com a idéia da cooperação internacional e muito menos unilateralista.

Estado – A Argentina teria encontrado um pouco mais de receptividade?

Lampreia – Não tenho dúvida. Os EUA reagiram assim não só no caso do Brasil, mas também no da Rússia e na crise asiática. Houve uma preocupação em manter o equilíbrio financeiro internacional.

Estado – A reação aos atentados de 11 de setembro teria sido diferente num governo Clinton?

Lampreia – Não creio. Foi um choque tão profundo no coração da América que acho que a indignação, o patriotismo e a vontade de vingança vieram do povo americano, independentemente da postura do governante do momento.

Estado – A insistência em atacar o Iraque tem mais a ver com a atitude do Iraque ou com o momento americano?

Lampreia – Acho que as duas coisas. Não há dúvida de que Saddam Hussein é uma espinha atravessada na garganta da família Bush há mais de dez anos. Por outro lado, o Iraque teve um notório programa de armas de destruição maciça – atômicas, biológicas e químicas. Como não há inspetores nucleares há vários anos, ninguém sabe o que está ocorrendo. Uma coisa é indiscutível: Saddam provoca muito.

Estado – Nessa corrida presidencial, alguns candidatos vão defender soberania e altivez na atitude do Brasil em relação aos países mais ricos. Esses conceitos têm alguma aplicabilidade? Há algo para se corrigir?

Lampreia – Têm toda aplicabilidade. Não há no comércio internacional ninguém de peso que não pense nos seus interesses nacionais muito prioritariamente. Acho que devemos estar muito atentos a isso e não sermos dogmáticos, ideológicos, nem num sentido nem noutro. Não acho que o Brasil possa se dar ao luxo nem de ser absolutamente liberal – seria a perda de boa parte indústria brasileira -, nem ser superprotecionista, de querer fechar inteiramente o País, querer bloquear, retaliar… Todo o segredo da questão será a defesa intransigente dos interesses brasileiros, mas caso por caso, setor por setor, em face de cada circunstância.

Estado – O candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, diz que o Brasil tem adotado uma atitude subalterna no jogo da globalização…

Lampreia – Nunca conversei com Lula, mas acho que ninguém pode dizer que temos tido uma posição subalterna ou inferiorizada. O que temos evidentemente são limitações. O Brasil não é uma superpotência, não pode impor sua vontade e rugir, fazer com que os outros tremam de medo. O Brasil tem sido altivo, afirmativo, mas tem que ter consciência do limite do seu poder, da sua capacidade de influir. Isso é um dado da vida, da realidade.

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