Democracias frágeis desestabilizam tigres

Não é necessariamente a democracia que tem de acompanhar a economia de mercado para assegurar desenvolvimento sustentável. É a abertura — política e econômica. Essa é a tese do economista indonésio Iwan Jaya Azis, professor-visitante na Universidade de Cornell, no Estado de Nova York.

Azis, um dos palestrantes na conferência “O Brasil e a Crise Asiática — A Economia Política das Turbulências Financeiras”, promovida pelo Instituto Fernand Braudel, em São Paulo, defendeu essa tese polêmica em entrevista exclusiva ao Estado.

As sucessivas crises financeiras que abalaram a Ásia e o mundo em 1997 reforçaram a tese de que o desenvolvimento só é sustentável, num cenário de livre mercado, se estiver respaldado, na esfera política, por instituições democráticas, que garantam previsibilidade, estabilidade e clareza de regras e de políticas governamentais. A crise asiática, ao se abater sobre países sem essas instituições, como Indonésia e Malásia, pareceu confirmar esse raciocínio.

Azis, no entanto, discorda que a democracia, em seu conceito ocidental, seja condição para esse desenvolvimento. Não que ele não goste de democracia. “O futuro que prevejo para a Indonésia é também o que desejo para o país: um regime democrático”, diz Azis, ex-conselheiro dos ministérios indonésios das Finanças e da Indústria e ex-chefe do Departamento de Economia da Universidade da Indonésia, do qual é professor-titular.

Essa é uma questão teórica para Azis, que pesquisa justamente a relação entre as esferas política e econômica, no contexto da globalização. A Indonésia é um caso paradigmático para analisar essa questão, porque combina a renitente ditadura do general Suharto — há 32 anos no poder — com o perfil de tigre asiático que cresceu mais de 7% ao ano na última década e finalmente sucumbiu à crise financeira na Ásia.

Azis argumenta que Tailândia e Coréia do Sul são países relativamente democráticos, mas foram igualmente atingidos pela crise financeira. Então, será que o problema não é que a democracia é condição necessária, mas não suficiente? “Cingapura não é uma democracia, no sentido ocidental, e não foi abarcada pela crise”, rebate Azis.  

E o que a Indonésia, a Malásia, a Tailândia e a Coréia do Sul têm em comum que Cingapura não tem? “Abertura econômica”, responde o professor. Cingapura goza de previsibilidade e clareza das regras e não padece do nível de corrupção que caracteriza a região. Assim, mantém-se com um crescimento econômico na casa dos 5%, “um nível alto para um país desenvolvido”, enfatiza Azis, distinguindo Cingapura dos outros tigres asiáticos, ainda em desenvolvimento.

Já a Tailândia e a Coréia do Sul, países relativamente democráticos, sofrem da corrupção e da falta de clareza de regras e de políticas que também perturbam o desenvolvimento sustentável da Indonésia e da Malásia. E o Brasil, que tem democracia, mas não a chamada “transparência”? Azis lança mão de um argumento auxiliar mais trivial: “Não basta que haja os ingredientes. É preciso um gatilho.” No Brasil, é sabido que o gatilho tem sido desarmado pelo governo — e a que preço. Na Indonésia, como foi que ingredientes e gatilho se encontraram? O professor retrocede até a crise do petróleo, em 1974. Ou melhor: o boom do petróleo, do ponto de vista da Indonésia, grande produtora. “A Indonésia ganhou muito dinheiro, mas não soube investi-lo.” Dois anos depois, em plena bonança, a estatal do petróleo, Pertamine, sofria uma crise financeira… A Guerra Irã-Iraque, iniciada em 1979, desencadeou novo boom.  

A economia indonésia ia bem. Em 1982, veio a recessão mundial. O barril do petróleo despencou de US$ 30 para menos de US$ 10. Jacarta reagiu com uma mudança na política econômica: abriu o mercado, diminuiu o protecionismo e incentivou a exportação de outros produtos além do petróleo: madeira e derivados, têxteis e óleo de palma. A partir de 1986, o PIB cresceu entre 7% e 8% ao ano.

 

O otimismo dos bancos estrangeiros e dos investidores externos e internos, combinado com juros altos e a voracidade dos empreendedores indonésios, elevou dramaticamente a dívida externa do país, sobretudo de 1994 em diante.

“Eram empréstimos a curto prazo e sem hedge (seguro), usados de maneira descuidada, sobretudo em investimentos de longo prazo, como imóveis”, lembra Azis. Esses ingredientes fermentaram por três anos.

Em 1997, o débito privado indonésio era de US$ 18 bilhões, para um PIB de US$ 220 bilhões — perto do dobro do teto de 5%, acima do qual economias costumam ser consideradas doentes. O gatilho disparou em julho, com o “ataque especulativo” ao baht tailandês e seu colapso. Os investidores saíram também da Indonésia, dados os paralelismos das duas economias. Foi a vez de a rúpia despencar.  

De volta ao eixo político-administrativo, Azis ilustra o mau uso dos empréstimos com histórias do arco da velha. Havia projetos como a construção do prédio mais alto do mundo — superando outro na concorrente Malásia — e da ponte mais longa do mundo. Para que essa ponte ficasse maior do que uma em Cingapura, ela faria uma curva, já que a travessia em questão não era suficientemente larga. “Esses projetos não tinham visibilidade”, diz o professor. “Não há um acompanhamento de sua evolução.” Além disso, há problemas mais conhecidos, como a corrupção e o monopólio de setores lucrativos da economia pelos familiares de Suharto. É aqui que a questão se torna eminentemente política. O ditador está com 76 anos. O que acontecerá, quando morrer? “Se o ditador morrer”, diz o professor, cometendo um ato falho, “será substituído por algum general.” Não se sabe quem. Não há candidatos conhecidos, como não havia quando Suharto foi escolhido pela cúpula, em março de 1966.

Independentemente da morte de Suharto, o professor trabalha com o cenário de “abertura política” na Indonésia. “Não há outro caminho.” Democracia já seria exagerado esperar, diz Azis, ressalvando que não é cientista político — se bem que o professor conhece o regime de perto: sua família é proprietária de um dos maiores jornais indonésios, o Surabaya Post, fundado em 1953 e dirigido pela mãe dele.

As Forças Armadas, para justificar o controle, jogam com o espectro da fragmentação: os 200 milhões de indonésios dividem-se em centenas de etnias, línguas e dialetos, e 30 mil ilhas. A crise, com os saques e as manifestações, só reforçou as justificativas dos militares.

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