Biopiratas entram no País pelas portas da Funai

Empresários, pesquisadores e ONGs têm recebido autorização para entrar em terras indígenas e patentear riquezas.

BRASÍLIA — A professora Mari Baiocchi parece não acreditar no que está ouvindo. O cacique Cotóque e o índio Amanuá, da tribo camaiurá, tentam convencer a coordenadora de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional do Índio (Funai) a autorizar o marroquino Kamal Benjelloun a entrar no Parque do Xingu, em Mato Grosso. Seus argumentos deixam a antropóloga perplexa.

“Kamal já é pajé”, atesta Amanuá. “Meu pai já ensinou tudo para ele”, completa Cotóque, filho do cacique Tacumã. 

Desde 1987, o empresário Benjelloun visita o Xingu, com a autorização da Funai e a convite dos índios, em troca de presentes. Na véspera dessa reunião, ocorrida no dia 31 de julho, na Funai, ele havia dado US$ 1.300 para o pajé Sapaim, que fazia gestões, em Brasília, pela concessão da autorização ao marroquino. Benjelloun disse que estava levando US$ 17 mil para o cacique Tacumã.

Partiu com os índios para o Xingu no sábado, em avião por ele fretado. A professora, resignada diante das pressões dos índios, concedeu autorização em caráter especial, já que a documentação de Benjelloun não cumpria os requisitos: projeto, vacinas, etc. Limitou-se a enviar um funcionário seu, Marco Antônio do Espírito Santo, para seguir o marroquino por toda parte, e a conceder apenas uma semana, quando ele solicitava dois meses. 

“O governo faz tudo para atrapalhar”, disse Benjelloun ao Estado, já com a autorização na mão. Benjelloun é apenas um exemplo de relacionamento direto que empresários, pesquisadores, missionários e ativistas de organizações não-governamentais (ONGs) estabelecem com os índios. Não só driblam a Funai, a representante do Estado brasileiro nessa área, mas, muito freqüentemente, indispõem os índios contra o órgão. A falta de credibilidade e mesmo a ausência da Funai e do Estado nas terras indígenas propiciam a empreitada.

Já há uma metodologia para estabelecer esse relacionamento. Tudo começa com um contato direto com os índios, com ou sem autorização da Funai. Os índios são seduzidos com presentes e declarações de amizade. “Índio acredita no que dizem para ele”, diz a professora. Em seguida, promove-se a criação de associação dos índios da aldeia ou da reserva. É com elas que o novo amigo dos índios negociará. Quando finalmente é feito contato com a Funai, os índios já estão organizados e motivados em torno do projeto. 

Ao entrar em cena, a Funai tem sido extraordinariamente compreensiva, como

atestam os exemplos de autorização, que são só uma pequena amostra. Em muitos dos processos, técnicos — antropólogos, geólogos, etc. — contratados pela Funai para dar os seus pareceres recomendaram exigências como relatórios finais sobre resultados de pesquisas, assinatura de convênio estipulando porcentagem de lucros para os índios e assim por diante. Essas exigências freqüentemente não são cumpridas, mas nem por isso as autorizações deixaram de ser renovadas, constatou o Estado, pesquisando os arquivos da Funai.

O presidente da Funai, Sulivan Silvestre Oliveira, que assumiu há um ano, disse que pretende estabelecer “o controle sobre a entrada e permanência” em terra indígena, regulamentar e rever os convênios com missões religiosas, pesquisadores e ONGs. Para isso, tem uma portaria redigida, que já obteve o aval do Ministério da Justiça, mas é alvo de intenso bombardeio dos evangélicos, com seu temido lobby no Congresso, e das ONGs, com sua reconhecida influência sobre a opinião pública e o governo.

“Muitas vezes, a Funai não representa os interesses dos índios”, observa a assessora Jurídica do Instituto Socioambiental (ISA), Juliana Santilli, ao defender a negociação direta entre empresários ou pesquisadores e as comunidades indígenas. “Muitas vezes, os índios têm de se defender da Funai”, acrescentou, preferindo não mencionar casos concretos. “Sempre que possível, é melhor para o índio negociar diretamente.”

O projeto de lei sobre acesso a recursos genéticos, apresentado em 1995 pela senadora Marina Silva (PT-AC) e modificado pelo relator Osmar Dias (PSDB-PR), prevê o controle e a intermediação do Estado, por intermédio de conselho cuja composição seria definida pelo Executivo. “Quando uma ONG propõe que a negociação seja direta com os índios, é porque existe aí o dedo de alguma multinacional”, afirmou ao Estado o senador Osmar Dias.

“O Estatuto do Índio garante às comunidades indígenas o direito de manter contatos diretos com quem quiserem, a não ser no caso de índios isolados”, argumenta Márcio Santilli, conselheiro do ISA. “Esses contatos só vão multiplicar-se, e não vai ser portaria de presidente da Funai que vai impedir isso.”

O diretor do Departamento de Índios Isolados da Funai, Sydney Possuelo, acha que o órgão tem de estar presente em todas as negociações, embora a intervenção deva variar de acordo com o grau de aculturação dos índios.

“Quando surge um problema, as ONGs podem dar as costas e ir embora”, diz Possuelo. “O Estado, não, pois tem responsabilidade sobre os índios.” 

O ISA considera que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) bastaria para supervisionar convênios de pesquisa de recursos genéticos, também nas terras indígenas. Mas, e a especificidade de lidar com os índios, que detêm conhecimentos valiosos sobre esses recursos, concentrados em suas terras, e são fáceis de enganar e de contentar com migalhas?  

Santilli, que foi presidente da Funai entre 1995 e 1996, responde que o órgão “não tem qualquer qualificação para intermediar relações com os índios”. O ex-deputado federal acusa a Funai de “surto corporativo”. E denuncia: “Foram pessoas da Funai que subverteram a tutela e permitiram a biopirataria.”

Sobre a mesa da professora Baiocchi pousam diariamente pedidos de autorização de ingresso em terra indígena das mais diversas origens e inspirações.  Na quinta-feira, cedendo a pressões — e à constatação da existência de um antigo convênio —, a coordenadora de Estudos e Pesquisas da Funai autorizou a entrada de uma equipe da Regnskogsfondet, a versão norueguesa da Rainforest International, na Reserva Alto Rio Negro, noroeste do Amazonas.

Eles entrarão com nove pessoas, entre pesquisadores, cinegrafistas e quatro estudantes de 15 anos, para filmar as reações no encontro entre os jovens noruegueses e os índios uaiapis. ONGs financiadas pela entidade norueguesa, como o ISA e o Centro de Trabalho Indigenista, assim como a embaixada norueguesa, trabalharam pela autorização.

Não há indícios de envolvimento direto em biopirataria por parte do ISA ou do CTI. O que esses casos testemunham é uma clara disputa política entre as entidades, de um lado, e a atual presidência da Funai, de outro, quanto ao controle sobre o acesso a terras indígenas. Na opinião do presidente da Funai e de seu braço direito, a professora Baiocchi, a ausência — ou complacência — do órgão indigenista do Estado abre caminho para a biopirataria. Já as ONGs consideram que o Estado não pode evitá-la.

“Não é com poder de polícia, mas com uma estratégia de pesquisa em recursos genéticos que o País pode superar o problema”, diz o ex-presidente da Funai Márcio Santilli. Isso porque o Brasil tem perdido sistematicamente a corrida ao patenteamento dos princípios ativos. Mas, e nesse ínterim? “Querem enfraquecer ainda mais o Estado”, lamenta a rofessora Baiocchi.

 

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