Brasil já se adapta à era Kyoto

Estão em andamento no País 29 projetos do mecanismo que rende lucros ao evitar emissão de gases num lugar e liberá-la em outro.

No quilômetro 33 da Rodovia dos Bandeirantes, há um entra-e-sai contínuo de caminhões. Depois de passar pela cancela, enveredam pelos 5 quilômetros de estrada de terra, sobem na balança e seguem em frente até a beira de um precipício. Ali levantam suas caçambas em ângulos de 45 graus ou mais, e despejam sua carga: 3 mil toneladas de lixo por dia, vindas da capital e do interior, empurradas monotonamente por tratores para dentro do grande buraco.

Enquanto a cratera vai engolindo os dejetos, uma montanha de lixo ao lado, já aterrada, descansa placidamente. Mas a calma é só aparente. Nas suas entranhas, o material pútrido fermenta gás metano, drenado por tubulações forradas de pedras quadrangulares, que o conduzem até duas chaminés de 2 metros de altura na superfície. O gás alimenta uma chama constante, que só chuva forte apaga, para ser acesa em seguida pelos funcionários do aterro.

Por trás desse fogo, além do gás, fervilham também muitos planos. Em breve, essas discretas chamas na antiga Vila dos Pinheiros, município de Caieiras, poderão permitir que, a 10 mil quilômetros daqui, na longínqua Bélgica, uma termoelétrica possa seguir funcionando a pleno vapor, excedendo sua cota de emissão de gases do efeito estufa. Esse estranho casamento planetário é possível graças ao mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL), pelo qual, evitando-se emissão de gases num lugar pode-se liberá-la noutro completamente diferente. 

Ao obterem a concessão ambiental do aterro privado, a Vega e a Cavo, as duas empresas que o operam, comprometeram-se a queimar 20% do metano gerado pelo lixo, evitando que ele se transforme numa imensa bomba de gás. O equipamento de sucção deverá extrair 80%. A diferença se transformará em crédito. A Vega pertence ao Grupo Suez, da França, que também é dono da Electrabel, que opera termoelétricas na Bélgica. Ela poderia ficar com os créditos. Mas o presidente da Vega, Lucas Quincas Radel, conta que está sendo assediado também por compradores europeus de fora do grupo. “Estamos em plena negociação”, anima-se. 

O Aterro de Caieiras ainda é uma promessa. Mas, antes mesmo de o Protocolo de Kyoto entrar em vigor, colocando oficialmente em marcha o MDL, já há no Brasil operações em pleno andamento. O primeiro projeto aprovado pelo Secretariado do Comitê Executivo da Convenção de Mudanças Climáticas da ONU, com sede em Bonn, foi do Brasil: o NovaGerar, um aterro sanitário em Nova Iguaçu, no Rio, que gera energia com o gás metano extraído do lixo. Até 2012, esses créditos, vendidos ao governo da Holanda, devem render pelo menos US$ 10 milhões à EcoSecurities e à S/A Paulista, donas do aterro. 

O MDL foi idéia de diplomatas e técnicos brasileiros, durante as negociações do Protocolo de Kyoto, em 1997, como forma de os países industrializados cumprirem suas metas rigorosas financiando projetos nos países em desenvolvimento. O Brasil é um dos países com maior potencial de oferta desses créditos, ao lado da China, Índia e Indonésia. Os países em desenvolvimento ficaram de fora das metas, nessa primeira etapa do Protocolo, que vai até 2012. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), em junho de 2004, o Brasil detinha 29 dos 86 projetos de MDL em diferentes fases no mundo. 

A China leva vantagem sobre o Brasil, na disputa desse mercado, por uma razão um pouco torpe: boa parte de sua energia elétrica é gerada por carvão, densamente poluente. Torna-se mais fácil reduzir emissões de gases e assim obter créditos. O Brasil gera eletricidade basicamente com hidrelétricas, que já são uma fonte limpa. Para o austríaco Werner Kornexl, responsável pelos projetos dessa área do Banco Mundial no Brasil, o País pode compensar essa desvantagem por ser “menos burocrático” e ter um “setor privado mais ágil”. 

“É uma grande oportunidade para o Brasil, que há três décadas vem priorizando a biomassa, acumulando conhecimentos com o Proálcool”, diz Antônio Sérgio Martins Mello, secretário de Desenvolvimento da Produção do MDIC. Segundo o secretário, o Brasil é também “referência” na área de celulose, com os projetos de reflorestamento de eucaliptos. Além de ser o único que usa carvão vegetal na siderurgia. “Esse acervo de competência habilita o País a participar desse jogo.” 

O ministério firmou em dezembro um convênio com a Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F) para organizar, em seis meses, um mercado de certificados de emissão de carbono. Já existem transações privadas de papéis, movimentadas pela demanda na União Européia, que se antecipou à entrada em vigor do Protocolo e se impôs o corte de 8% nas emissões sobre a base de 1990. 

A partir de abril, a UE cobrará das empresas que consomem mais de 30 megawatts/hora multas de 40 euros por tonelada de carbono – ou seu equivalente noutros gases – emitida acima da respectiva cota, estabelecida e monitorada por cada país. A Bolsa Européia de Energia negocia a tonelada do carbono a 10 euros. Já o Banco Mundial, que compra créditos de projetos antes de serem aprovados pelo Secretariado, assumindo os riscos, paga mais barato: US$ 3,5 a tonelada. Assim, evitar a multa torna-se altamente vantajoso, apesar dos riscos do mercado pouco regulado. 

“Essas vendas de balcão não têm transparência, regras mínimas de negociação”, observa Guilherme Fagundes, chefe do Departamento de Projetos e Pesquisas da BM&F. Na Europa, já existe até um mercado secundário de papéis, que começam a ser comprados por especuladores. No Brasil, o Banco Central ainda não tem sequer uma rubrica para a entrada dos pagamentos desses certificados, que têm sido registrados como créditos de exportação. 

A BM&F pretende fomentar as transações, criando um banco de projetos. Os menores poderão se juntar para criar escala, dividindo os custos de transação. Para cumprir as várias etapas de aprovação, passando por uma empresa credenciada pela ONU para examinar os projetos, pela aprovação do governo e finalmente do Comitê Executivo, são gastos cerca de US$ 50 mil. 

Apesar dessas iniciativas, o secretário do Meio Ambiente de São Paulo, José Goldemberg, acha que a Comissão Interministerial de Mudanças Climáticas está “muito lenta” na aprovação de projetos. “O argumento deles é que não havia quadro legal antes da entrada em vigor do Protocolo, mas a China não esperou por isso e foi aprovando projetos.” 

“O governo fica parado esperando que o mundo bata à porta”, concorda Marco Antonio Fujihara, diretor de Sustentabilidade da consultoria Price Waterhouse. “Ele deveria estabelecer quais são os setores mais competitivos e induzi-los a entrar no mercado, definindo como pré-requisitos o desenvolvimento sustentável e a responsabilidade social.” 

 

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