Política para Amazônia ainda não saiu do papel

Região continua marcada pela ausência do Estado e desinteresse do resto do País.

“A Amazônia”, escreveu Euclides da Cunha, no início do século 20, “ainda sob o aspecto estritamente físico, conhecemo-la aos fragmentos. Mais de um século de perseverantes pesquisas e uma literatura inestimável, de numerosas monografias, mostram-no-la sob incontáveis aspectos parcelados. A inteligência humana não suportaria, de improviso, o peso daquela realidade portentosa.” 

Um século depois, estamos mais ou menos na mesma. A Amazônia segue sendo um mistério. O imenso fascínio que ela exerce sobre o mundo é feito de imagens fragmentadas, freqüentemente distorcidas. Muitos brasileiros no Centro-Sul conhecem melhor os Estados Unidos e a Europa do que o norte do País. Muitos americanos e europeus se alarmam com o que ouvem falar, mas poucos sabem de fato o que é a Amazônia, embora o seu interesse tenha trazido mais e mais turistas para a região. 

Em 2003, o Estado do Amazonas recebeu 36.970 turistas estrangeiros (um aumento de 38% em relação ao ano anterior) e 71.740 brasileiros (11% a mais que em 2002). Os visitantes estrangeiros ainda são menos do que os brasileiros, mas seu número está crescendo num ritmo maior. Os vôos diários de Brasília para Manaus vão lotados de estrangeiros, atraídos pelos 19 hotéis na selva do Amazonas. Há também um vôo semanal de Miami e neste mês deve começar outro de Madri. 

Muito antes dos turistas, no entanto, missionários, antropólogos, biólogos e ativistas de organizações não-governamentais têm vindo de fora esquadrinhar a Amazônia, motivando reações xenófobas, suspeitas e teses conspirativas. A presença e o interesse dos estrangeiros, no entanto, só têm sido tão visíveis por causa da ausência do Estado brasileiro e do desinteresse do resto do País. 

“O Brasil está de costas para a Amazônia”, diz o geólogo Salomão Cruz, vice-governador de Roraima. “A Amazônia não é tema nacional. Não se discute com seriedade. Não está integrada a um projeto nacional.” 

Agenda negativa – Para o pesquisador Evaristo de Miranda, da Embrapa Monitoramento de Satélite, nem sempre foi assim. “Desde a Coroa portuguesa até o governo Sarney, sempre houve políticas para a Amazônia, que se podiam criticar ou elogiar”, diz Miranda, doutor em ecologia e autor do livro Natureza, Conservação e Cultura, que conta a história da exploração da Amazônia. “Hoje, está totalmente à deriva. Não foi proposto nada. Só há uma agenda negativa: multar, pôr mais fiscal…” 

Em maio do ano passado, durante sua visita ao Acre, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu início às discussões de um Plano Amazônia Sustentável (PAS). No mês seguinte, os sete governadores da Região Norte se reuniram em Belém e estipularam um método e um calendário, que dava prazo até agosto para encerrar as discussões. Mas o PAS dependia do Plano Plurianual (PPA) para ser concluído. Com os atrasos na elaboração do PPA – que até hoje não foi votado em plenário no Congresso -, o PAS foi-se arrastando dentro do governo. 

Em outubro, chegou-se a um texto de 76 páginas, que está sendo revisto pelos técnicos de um grupo interministerial coordenado pelo Ministério da Integração Nacional. Numa data ainda não marcada, ele deverá ser enviado aos governadores. E, depois, será aberta a sua discussão em audiências públicas.

As propostas são precedidas de um longo diagnóstico, que ocupa a maior parte do texto. Apenas as 20 páginas finais descem a detalhes de iniciativas que poderiam ser tomadas em três “macrorregiões” nas quais foi dividida a Amazônia. Mas ele não chega a descrever medidas concretas nem estabelecer metas ou volume de recursos. 

“O PAS é deliberadamente vago”, diz o economista Antônio Carlos Galvão, diretor de Planejamento de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional. “Ele é a base de um grande plano de vôo, que pode ser revisto, para ser discutido com os parceiros. Se houver um consenso público nacional, aumentam as chances de ele ser implementado.”

O plano rebatiza o “Arco do Desmatamento”, uma extensa faixa que vai de Rondônia ao Maranhão, de “Arco do Povoamento Adensado”, como uma forma de reconhecer as demandas da população que vive lá. A Amazônia Ocidental, em contraste, é uma área ainda amplamente preservada – e desabitada -, na qual se pretende “encontrar alternativas para tirar mais renda da floresta em pé do que desmatando”, segundo Galvão. 

A antiga reivindicação de produtores agrícolas e mesmo de especialistas, de uma revisão da legislação que prevê a reserva de 80% das fazendas em áreas de floresta, não deve ser atendida por este governo. 

“O argumento de que a reserva de 80% é exagerada não procede”, diz o biólogo João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente. “Mesmo com essa lei, temos um desmatamento em escala inaceitável, de 23 mil quilômetros quadrados ao ano.” Segundo o secretário, a reserva de 80% nas áreas de floresta não significa um “congelamento da propriedade”, que “pode ter um uso econômico, só não se pode derrubar a mata”. Capobianco considera o índice “razoável”, porque sobram áreas subutilizadas na Amazônia. 

Para o secretário do Meio Ambiente do Amazonas, Virgílio Viana, “não é sensato” impor linearmente uma reserva de 80%. “Num ecossistema muito variável como o da Amazônia, há lugar em que tem de ser 90%, e há lugar em que tem de ser menos”, argumenta Viana. “Tudo tem de ser de acordo com as características ecológicas e socioeconômicas das diversas paisagens.” 

Para uma definição em sintonia fina das áreas de reservas, seria necessário um zoneamento ecológico-econômico de cada região. Alguns Estados, como Acre, Rondônia e Mato Grosso, já fizeram seus zoneamentos, mas eles ainda são questionados. “Não temos nenhum exemplo de zoneamento pacífico, que seja objeto de consenso entre os diversos atores”, afirma Capobianco. “Enquanto não tivermos esse instrumento, precisamos de outro para proteger os ecossistemas naturais.” 

Experimento – O zoneamento é uma das iniciativas previstas na pavimentação da BR-163 (Cuiabá-Santarém), que atravessa a Amazônia Central e na qual serão testadas as hipóteses do PAS. O governo pretende fazer um Plano de Desenvolvimento Regional para acompanhar a pavimentação da rodovia, numa espécie de “experimento” para as iniciativas em toda a Amazônia. Segundo Galvão, “não adianta ficar só no Estudo de Impacto Ambiental e com medidas mitigatórias”, como se tem feito no Brasil, quando se realiza uma obra desse porte. 

A pavimentação, a cargo de um consórcio composto pelos grupos Maggi (do governador de Mato Grosso, Blairo Maggi), Bunge e Cargill, que têm interesse em melhorar o escoamento da soja, deverá vir acompanhada da regularização de terras e da melhoria dos serviços públicos e da infra-estrutura dos municípios ao longo da rodovia. 

É o que há de mais concreto, em matéria de política do governo para a Amazônia. Quanto ao PAS, trata-se de “um documento de estratégia, que não diz o que fazer, mas como fazer”, na definição de Antônio Carlos Galvão. Não há previsão de quando o plano sairá do campo das idéias para o da aplicação prática. Só há uma certeza: ainda vai tomar tempo até que todos os “atores envolvidos” o discutam. 

 

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