O caráter de um governo

Proposta de Mário Covas para a polícia não o redime do cinismo em momento crucial

O governador Mário Covas deve ter sentido certo constrangimento ao ver, dias atrás, as imagens do confronto entre estudantes e policiais argentinos. Os estudantes avançavam com pedras, paus, cadeiras e outros objetos e, com fúria e ousadia sul-coreanas não arremessavam, mas iam até os policiais para bater neles. Os policiais, impecavelmente protegidos, com grandes escudos blindados, capacetes, máscaras, coletes, etc., limitavam-se, estáticos, a assimilar os golpes, sem nada sofrer. Os estudantes? Foram processados.

A suposição de que o governador de São Paulo tenha ficado constrangido parte de duas premissas simpáticas a ele. Que assista atentamente ao noticiário-e não apenas aos vídeos que sua equipe de segurança pública coloca para ele ver, concluindo em seguida, como na morte dos três sem-teto: “Não vejo nada de mais”, “não dá para dizer que a polícia se excedeu”, o timbre grave e o semblante sóbrio em contraste com a afirmação patética. A outra premissa é de que o governador conserva a capacidade de se constranger, ao contrário de outros.

No percurso de um governo, certos momentos funcionam como definidores de caráter. São momentos decisivos, que aparecem em instante e de maneira imprevisíveis, reclamando um gesto, uma atitude. Não dá tempo para planejar. É aí que se conhece o caráter de um governo. Não se trata aqui de perfil ideológico nem de desempenho eleitoral. Essa, definitivamente, não é uma discussão para marqueteiros. Não se resolve por pesquisa nem sorteio. Nao é uma questão de “comunicação, como é mania de governos detectar, quando sua euforia dá lugar à depressão. É um registro mais alto, que um homem público só alcança quando se liberta de preocupações mesquinhas, corporativas, eleitoreiras. E, embora o estadista não possa provocar ou prever o momento definidor, sabe reconhecê-lo quando ele chega e o acolhe com o apetite de quem esperava por ele.

Mário Covas teve, este ano, dois momentos desses, o que não é comum. Ambos propiciados pela Polícia Militar. No primeiro, um vídeo flagrava policiais fardados agredindo, extorquindo e matando moradores de uma favela. No segundo, policiais abriram fogo contra uma multidão armada de paus e pedras e mataram três pessoas.

No primeiro caso, o governador compareceu à entrevista coletiva em que se ocupou, basicamente, de explicar por que estava mantendo os comandantes e o secretário de Segurança Pública em seus postos, apesar da evidente deslealdade, indisciplina ou incompetência em não lhe fazer chegar a informação da existência da fita nem tomar providências compatíveis com a seriedade do caso. A recusa em demitir a cúpula da segurança pública fez com que as discussões se encontrassem no caminho percorrido pela fita dentro da polícia e rido na atitude dos policiais – o que realmente importava.

Naquela coletiva, o governador se mostrou sarcástico e prepotente, na tentativa de converter o absurdo em normal. Curioso recordar as antigas preocupações dos correligionários de Mário Covas com seu modo taciturno, supostamente ruim de voto. Ali, Covas, o governador eleito, aparecia com os sinais trocados: sorria cinicamente, num momento grave.

Então veio o confronto no conjunto habitacional da zona leste, com cenas incríveis e dramáticas de soldados esgueirando-se entre carros de reportagem e material de construção, sob chuva de pedras e paus, sem escudos, gás lacrimogêneo nem jato d’água – os clássicos equipamentos para dispersão de multidões. Incrível, porque 24 horas antes o governador tinha sido alertado de que os invasores resistiriam à desocupação e, mesmo assim, o batalhão de choque não fui mandado. Dramático, porque os soldados finalmente abriram fogo – no momento em que seu comandante constatava o óbvio: a tropa era inadequada para a operação.

Enquanto o comandante pensava em bater em retirada, os soldados atiravam. O governador apareceu mais tarde para dizer que não vira nada de necessariamente excessivo na ação da polícia e, mais uma vez defender a corporação viciada e seus comandantes irresponsáveis.

O governador aparentemente acredita que sua complexa proposta de reestruturação da polícia, apresentada entre uma selvageria e outra, compensa sua inapetência naqueles dois momentos definidores e o redime. Há aí, no entanto, uma confusão entre ordens de grandeza. A proposta pode ser boa ou ruim, aproveitada ou engavetada. Já sua conduta e atitude são tão irrevogáveis quanto insubstituíveis.

 

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