O mártir

Issa (Jesus), professor jordaniano, deixa a família e, como muitos conterrâneos, parte para o Iraque decidido a dar a vida para combater os ‘infiéis’.

AMà– No domingo passado, Nahla Rahim foi ter uma conversa séria com Issa, seu único filho homem e o mais velho. “Agora que você acabou esse mestrado, não tem mais desculpas para não se casar”, disse a mãe ao filho de 24 anos, idade em que os árabes em média constituem família. “Se você não tiver encontrado uma moça, deixe que seu pai e eu arranjamos.”

“Não vou me casar, porque decidi ser um shahid (mártir)”, respondeu Issa. “Vou para o paraíso e lá terei quantas mulheres quiser.” Nahla achou que o filho estivesse apenas usando um subterfúgio para encerrar a conversa, e interpretou a resposta como um sinal verde para ela e o marido, Abdel Karim, irem atrás de uma boa moça.

Dois dias depois, Nahla descobriria que seu filho não estava brincando. No início da noite de terça-feira, Mohammed, o melhor amigo de Issa, pediu que a família ouvisse uma mensagem deixada pelo rapaz no correio de voz de seu celular. Nela, Issa (o nome árabe de Jesus) se despedia docemente dos pais e das três irmãs e pedia perdão por sua decisão extrema.

Issa gravara a mensagem por volta do meio-dia, antes de partir para Bagdá num microônibus, com cerca de dez rapazes de sua faixa etária e nível universitário, para se apresentarem para o “martírio”, que em termos práticos se traduz em ações suicidas de ataque às tropas da coalizão anglo-americana no Iraque. Issa pediu ao amigo que só mostrasse a mensagem seis horas depois de sua partida de Amã, de modo a dar-lhe tempo para cruzar a fronteira com o Iraque.

Formado em pedagogia pela Universidade da Jordânia, e com mestrado em matemática recém-defendido, Issa dava aulas numa escola em Amã sustentada pela Unrwa, a agência da ONU dedicada aos refugiados palestinos. Sua família, ela mesma originária do vilarejo de Nifta, perto de Jerusalém, é pobre. Os seis vivem apertados numa pequena casa num cortiço do bairro de Al-Massarueh (Os Egípcios), que tem esse nome porque surgiu como cidade-dormitório de trabalhadores imigrantes do Egito, antes de ser ocupado pelos palestinos.

Abdel Karim, de 50 anos, hoje desempregado, criou os filhos trabalhando como vendedor de porta em porta. Com seu salário mensal de US$ 280, Issa custeava os estudos de duas de suas três irmãs. Teve o cuidado de embarcar no segundo grupo de mártires – 20 rapazes em dois microônibus, um saindo na segunda e outro na terça-feira -, para ter tempo de receber seu último salário e deixar o dinheiro em casa antes de partir.

Ao ouvir a mensagem, Nahla, de 45 anos, desmaiou e teve de ser levada a um hospital. Abdel Karim se sentiu traído pelo filho. “Eu sempre o tratei como um amigo, não como filho”, diz o pai. “Ele nunca tinha mentido para mim.

Tenho de ir até Bagdá e perguntar para ele: ‘Por que você mentiu para mim?'” A precaução de Issa em avisar os pais só depois que estivesse no Iraque é compreensível. O governo jordaniano tem a política de impedir a passagem e deter voluntários que tentam cruzar a fronteira para ações desse tipo. E já houve casos de mães que ligaram para a polícia e tiveram os filhos detidos antes de cruzar a Ponte Allenby, que liga a Jordânia a Israel.

Um comboio com cerca de 200 homens vindo de Maan, reduto fundamentalista no sul da Jordânia, foi parado na segunda-feira pela polícia no posto de fronteira de Karama. Seu destino também era o “martírio”. A partir daí, os voluntários têm ido em microônibus ou em carros de passeio. Um deles, com quatro voluntários, foi atingido por um míssil na estrada para Bagdá na terça-feira, matando todos.

Apesar das dificuldades, 2 mil jovens jordanianos desapareceram na última semana, muitos dos quais podem ter partido para o sacrifício no Iraque. Uma rota alternativa muito usada nos últimos dias tem sido a Síria, cujo governo, acusado pelos Estados Unidos de fornecer equipamentos militares ao Iraque, parece estar incentivando – seguramente não está impedindo – a passagem de mártires vindos de todo o mundo árabe e muçulmano.

A estimativa do governo iraquiano, de que até o domingo já haviam chegado 4 mil árabes prontos para se sacrificarem pelo país, pode ser exagerada, mas descabida não é. Os múftis – máximas autoridades nacionais islâmicas – do Iraque e de vários outros países emitiram fatwas (decretos religiosos) convocando os fiéis para o martírio em defesa de um país muçulmano invadido por infiéis.

Muitos fiéis vêem nessa jihad (a luta em nome de Deus) uma oportunidade para conquistar o paraíso, para si mesmos e seus pais, também recompensados pelo sofrimento com a perda do filho. Nos territórios palestinos, entre as famílias de fé mais arraigada, as mães recebem os convidados para o funeral de seus filhos com sorrisos e doces, para celebrar seu ingresso garantido no paraíso.

Não é o caso da família Rahim, que reagiu à notícia com desespero. Em geral, os parentes de um shahid experimentam sentimentos conflituosos, a dor e a revolta pela perda do filho em aparente confronto com o desígnio divino.

O conflito de sentimentos reflete um outro embate, de natureza teológica e política: os múftis sunitas se dividem quanto à validade do martírio de fiéis que explodem bombas matando a si mesmos e a outras pessoas, muitas vezes inocentes. Alguns múftis moderados o aceitam como martírio, desde que as vítimas sejam militares ou colonos judeus nos territórios palestinos.

Outros rejeitam qualquer ação desse tipo, não só pelo seu conteúdo terrorista, mas também porque o suicídio é expressamente proibido pelo Islã.

Finalmente, há uma parcela de teólogos islâmicos – aí incluídos os múftis xiitas – que interpretam todas essas ações como jihad, a luta a que todos os muçulmanos estão obrigados para defender sua religião e sua terra.

Um dos textos citados para sustentar a tese da recompensa pelo martírio é essa passagem da Hadith, a compilação das frases e atitudes exemplares do Profeta Maomé: “Ninguém que entrar no Paraíso vai querer voltar para o mundo e ter qualquer coisa na terra, exceto o shahid. Ele desejará retornar ao mundo e ser morto dez vezes, por causa da honra de que é coberto.”

O Alcorão, o livro sagrado muçulmano, não deixa dúvidas quanto ao ganho advindo do desprendimento: “Os que creram e emigaram e, na luta por Deus, arriscaram suas posses e sua vida, obterão a mais alta dignidade junto a Deus. Eles se salvarão. Seu Senhor anuncia-lhes clemência e recompensas e jardins onde conhecerão uma felicidade ininterrupta”, dizem os versículos 20 e 21 do capítulo 9.

Os textos, no entanto, não fazem menção ao martírio moderno dos homens-bomba. Essa nova versão de martírio foi criada pelos xiitas do Hezbollah (Partido de Deus) no sul do Líbano, nos anos 80, na luta contra a ocupação israelense. Os sunitas do Hamas e da Jihad Islâmica a assimilaram na Cisjordânia e Faixa de Gaza nos anos 90, no rastro da desilusão com os acordos de paz.

Para aqueles que querem acreditar, sempre haverá um texto, um fragmento que seja, para respaldar uma linha de ação. No caso da resistência iraquiana à ocupação americana, há na Hadith uma profecia que soa particularmente inspiradora para os múftis fundamentalistas: “Um inimigo mobilizará suas forças contra os seguidores do Islã. Então, durante essa guerra, uma luta renhida ocorrerá. Muçulmanos pedirão uma expedição de voluntários que jurarão morrer ou voltar vitoriosos.”

 

 

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