Diplomatas encaram Brasil com sofrido despeito

Em um dos documentos incluídos no livro ‘1964 — A Revolução para Inglês Ver’, o embaixador Leslie Fry referia-se ao carnaval como “orgia sem fim”

Em 1994, a emissora de televisão inglesa Channel Four enviou ao Brasil seu principal correspondente em Washington para uma reportagem sobre os famosos meninos de rua — ou street kids. A reportagem começava assim: “Los niños de la calle — that’s how they’re known here.” Até hoje me pergunto o que o repórter pensou: se a língua falada no Brasil era espanhol ou se “los niños de la calle” era uma expressão em português. Tendo a ficar com a primeira opção, depois de tantas vezes em que ouvi a seguinte desculpa, ao saberem que eu era brasileiro: “My spanish is no good.”

Esse é apenas um exemplo — talvez dos mais extremos — da colossal ignorância dos ingleses a respeito do Brasil, quando comparada com a quantidade de informação que brasileiros do mesmo nível intelectual têm sobre a Inglaterra e o Reino Unido de maneira geral (que inclui também País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte).

Numa das primeiras vezes em que fui cortar o cabelo em Londres, naquela conversa-padrão sobre “de onde você vem”, a cabeleireira entendeu “Belize”, quando eu disse “Brazil”. O pequeno vizinho da Guatemala, na América Central, veio à mente dela primeiro que o gigante situado logo abaixo.

Quando insisti, “Brazil, Brazil”, ela fez um “ah”, sem comentários. Por sinal, ela era da Ilha de Malta, no Mediterrâneo.

Um amigo teve mais sorte. Ao mencionar o longínquo “Brazil”, perguntaram “Brussels? Belgium?” Como reagiria uma cabeleireira no Brasil, ao saber que seu cliente é inglês? No mínimo, abordaria cada detalhe das proezas sexuais e desventuras amorosas da família real, para em seguida especular sobre a eventual paternidade do rolling stone Mick Jagger.

É preciso que algo muito extraordinário aconteça no Brasil para que ele compareça ao noticiário, na Inglaterra. Como nos outros países europeus, a imprensa, na Inglaterra, concentra o espaço dedicado ao chamado Terceiro Mundo nas respectivas ex-colônias. Assim, se quiser se tornar um especialista em Malásia, por exemplo, assista uma semana de televisão inglesa.

Considerando tudo isso, o livro 1964 — A Revolução para Inglês Ver contém uma inflação de informação sobre o Brasil, conforme o viram diplomatas ingleses num momento intrincado da história do País.

A visão é estereotipada? Em meio aos boatos de golpe, no caliente fevereiro de 1964, o embaixador britânico, Leslie Fry, explicava ao Foreign Office: “É totalmente inconcebível que alguma coisa venha a interferir nesta orgia sem fim e, por isso, nenhum acontecimento político significativo deverá acontecer nas próximas semanas.” O exagero aqui não está na avaliação.

Todos sabemos que, durante carnaval e Copa do Mundo, o Brasil pára. A expressão orgia sem fim é que trai o misto de complexo de superioridade intelectual e sofrido despeito com que os ingleses encaram esta fatia libidinosa do planeta.

As previsões fracassaram? “A situação continua incerta e grave, mas não é desesperadora e eu não acredito que o presidente Goulart venha a fazer outras provocações, a ponto de convidar os militares a deflagrarem um golpe de Estado”, assegura, uma semana antes do golpe, S. W. Martin, especialista do Foreign Office em América Latina. Ou o embaixador, garantindo, prematuramente, em julho de 1965: “A fase repressiva acabou logo.” O futurólogo que nunca tenha errado que atire a primeira pedra.

A atitude é paternalista? Acatando sugestão do Departamento de Estado americano, a chancelaria inglesa cogita de socorrer o Brasil, mergulhado em grave crise econômica, assim: “Nós poderíamos ajudar no treinamento de economistas, seja providenciando palestras ou oferecendo cursos no Reino Unido.” Como se o problema do Brasil, o País de economistas da categoria de Mário Henrique Simonsen, Roberto Campos e Celso Furtado, fosse ignorância técnica e não desfaçatez política.

É preciso reconhecer que a situação não era simples. Muitos telegramas foram consumidos na discussão sobre se e como a Grã-Bretanha reconheceria o novo governo. Afinal, o cargo de presidente podia mesmo ser declarado vago? João Goulart abandonara-o ou fora dele arrancado? Em qualquer caso, era importante, do ponto de vista diplomático, atentar para a Constituição brasileira? A saída encontrada foi o reconhecimento sem nenhum alarde,

apenas notificando o recebimento de uma mensagem qualquer do novo governo brasileiro. E quem acredita que só os brasileiros sabem dar jeitinho?

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