Nos trens, imigrantes na vinda, café na volta

Inaugurada em 1867, Ferrovia Santos-Jundiaí deu nova concepção urbana a São Paulo

 Aos 10 anos de idade, a menina Maria Inês Mazzoco tinha um problema. Fazia o curso de admissão (para passar para o ginásio) de manhã, na Lapa, e de tarde freqüentava o último ano primário perto de sua casa, na Subestação Elétrica do Tietê, hoje bairro do Piqueri. Entre um curso e outro, Maria Inês não tinha onde ficar. Seu pai, Leonildo Mazzoco, responsável pelo setor de cabines da São Paulo Railway (SPR), encontrou a solução. Conseguiu que o trem que saía às 10h17 da Lapa freasse na pequena parada da Subestação, só para deixar a menina.

Maria Inês ia sentada ao lado do maquinista, como um lembrete. Mesmo assim, às vezes ele se esquecia e só ia frear lá na frente. Quando possível, dava uma rezinha até a pequena plataforma de madeira. Quando não, o condutor jogava a maleta no chão, e Maria Inês ia correndo pela brita, até a paradinha da Subestação, onde a esperava sua cadela Diana – que seu irmão achou na estrada de ferro. Almoçava correndo e ia para o colégio Guilherme Khulman.

Bisneta, neta e filha de ferroviários, Maria Inês, hoje com 50 anos, é coordenadora de Preservação do Patrimônio Histórico da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Sua vida e a de sua família estão pontuadas pelas histórias e cenários da ferrovia, em particular a Santos-Jundiaí, a primeira estrada de ferro de São Paulo, inaugurada em 1867.

Maria Inês ainda não tinha nascido quando ocorreu a mais dramática dessas histórias, na madrugada do dia 7 de novembro de 1946. Seu avô materno, José Maria Dias, descansava em seu sítio onde hoje é Francisco Morato, a noroeste de São Paulo, quando uma locomotiva veio buscá-lo. José Maria era chefe do Departamento de Incêndio da SPR, e a Estação da Luz estava pegando fogo. José Maria encontrou toda a ala leste da estação destruída, incluindo a torre que abrigava os arquivos da ferrovia. Documentos, recibos, registros da história da ferrovia foram tragados pelo fogo.

O incêndio, obviamente proposital, ocorreu horas antes de a ferrovia ser encampada pelo governo federal. Mas o que mais marcou os que testemunharam a tragédia foram as badaladas do relógio, com o calor derretendo o mostrador, pontualmente às 4h30, em meio ao crepitar da madeira.

A rigor, o primeiro transporte coletivo urbano de São Paulo foram os bondes puxados a burro, em 1872. Entretanto, a inauguração da Santos-Jundiaí, cinco anos antes, teve múltiplos efeitos sobre a pacata cidade de 50 mil habitantes. A ferrovia trouxe do Porto de Santos os imigrantes que vieram desenvolver o Estado, e levou o café, propulsor da sua prosperidade.

Várias estações da linha de ferro, como Brás, Barra Funda, Lapa e Pirituba, além da Luz, ficavam dentro de São Paulo, passando a unir pontos antes isolados da cidade. As estações e as vilas ferroviárias construídas pelos ingleses para seus funcionários, ao longo da linha do trem, implantaram na cidade uma concepção de arquitetura e urbanismo.

A Estação da Luz, inaugurada em 1901, já nasceu intermodal, permitindo a ligação do trem com os outros meios de transporte – na época, carruagens e bondes; hoje, ônibus e metrô. Seu primeiro administrador, William Speers, pediu que fosse rebaixado o leito da ferrovia, para que o trem não atrapalhasse o tráfego dos outros veículos, que, como previu o inglês, cresceria nos anos seguintes.

As vilas ferroviárias, por sua vez, empurraram o perímetro urbano, proporcionando a seus moradores uma vida bucólica, mesmo depois de São Paulo se converter em metrópole. “Meu avô plantava uva e café, e nós nadávamos na lagoa do Frigorífico Armour”, recorda Maria Inês, de sua infância na vila ferroviária da City Lapa.

Entre as muitas coisas engendradas ao longo da ferrovia, está uma das mais caras instituições brasileiras. O engenheiro ferroviário Charles Miller, nascido em São Paulo e filho de ingleses, voltou em 1894 dos estudos na Inglaterra para trabalhar na Oficina da SPR na Lapa. Na bagagem, trouxe duas bolas de futebol.

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