O homem que parou São Paulo

‘Autodeterminado e inteligente’, Marcola poderia ter tido ascensão profissional grande, avalia psicólogo

 

Repetida hoje, depois do maior surto de violência da história de São Paulo, a declaração pode soar como um escárnio. Ou como uma terrível advertência. “O Estado deveria aproveitar e negociar conosco. Ainda bem que somos sensatos. Porque existem outros que são sanguinários, verdadeiros psicopatas. Se eles assumem a liderança do partido, aí é que o caldo vai entornar.” Quem disse isso, por volta de novembro de 2005, foi Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo do Primeiro Comando da Capital (PCC).

O psicólogo Alvino Augusto de Sá, da Secretaria de Administração Penitenciária, quis saber até onde iria a escalada de violência, já iniciada com motins nos presídios e ataques a bases da polícia. “Não sei”, respondeu Marcola. “Isso depende em grande parte do Estado, de sua disposição de negociar.”

Bandido desde os 9 anos, quando estreou como trombadinha na região central de São Paulo, Marcola revelou: “Minha vida é uma vida cheia de violências. Muito ódio, professor, muita raiva que tenho guardada dentro de mim. E que eu tenho de administrar; não posso, evidentemente, me deixar levar por esse ódio, por essa raiva, porque, se não, onde é que nós iríamos parar?”

“Admiro sua boa vontade, agradeço, mas não é numa conversa de uma hora que vou resolver tudo isso”, prosseguiu Marcola para o psicólogo e outros profissionais presentes, que trabalham na elaboração de critérios científicos para a ressocialização de presos. O líder do PCC olhava nos olhos do psicólogo, perscrutando a reação. “Minha intenção não era resolver isso numa conversa de uma hora”, retorquiu Alvino. “Estou aqui para discutir uma proposta de trabalho.”

“Ah, sei, então isso aqui é uma espécie de semente que o senhor está lançando”, refraseou Marcola. “Pois não, professor, prossiga. Desculpe a interrupção. Pode continuar.” Com essa classe, Marcola coordenou a reunião entre os estudiosos e os líderes do PCC – além dele, estavam ali também seu braço direito Júlio César Guedes Morais, o Carambola, e um terceiro dirigente da facção. Marcola e Carambola são suspeitos de terem planejado o assassinato do juiz-corregedor Antônio José Machado Dias, de Presidente Prudente (SP), em março de 2003.

Na conversa de pouco mais de uma hora, na sala de aula de uma penitenciária ao lado do presídio de segurança máxima de Presidente Bernardes (SP), Marcola demonstrou cultivar a auto-imagem de um homem controlado. E deixou no doutor Alvino, há 33 anos psicólogo da secretaria e professor de Criminologia Clínica da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a impressão de se tratar de um homem “autodeterminado, lúcido e assertivo”.

“É bom que a sociedade saiba que não está lidando com bandidos que estão babando”, diz o psicólogo. “São pessoas muito articuladas, muito inteligentes.” Para o professor, “Marcola tem uma visão muito clara do que está acontecendo”. Com as qualidades que reúne, analisa Alvino, enumerando “firmeza, ousadia e coragem”, Marcola “teria tido uma ascensão profissional muito grande, se tivesse tido oportunidade”. O psicólogo ressalva que não está elogiando criminosos, mas fazendo uma constatação objetiva.

Alvino não sabe o que Marcola, que abandonou a escola na 4ª série, tem lido, mas está seguro de que ele se preparou intelectualmente nesses anos de prisão. A carreira de pequenos assaltos dos anos 80 foi interrompida por uma passagem pela extinta Casa de Detenção, onde Marcola se casou em 1990 com a advogada Ana Maria Olivatto, morta por rivais em 2002. De lá, fugiu em 1997, foi capturado e escapou de novo, em 1998.

Saiu como grande assaltante, tendo roubado R$ 7 milhões da transportadora de valores Transpev. Gozou de um breve período de liberdade e luxo, andando em carros importados e trajando roupas de grife, o que lhe valeu o apelido Playboy. Até cair em julho de 1999, quando veio visitar o irmão Alejandro, também bandido. E não saiu mais da prisão, apesar de tentativas de resgate frustradas, promovidas pelo PCC, que ele passou a liderar no fim de 2002, depois de um racha entre os fundadores. Suas penas, que somam 39 anos, superam sua idade: Marcola nasceu há 37 ou 38 anos em Osasco, filho de pai boliviano e mãe brasileira.

Numa passagem da conversa com os estudiosos, Marcola, falando um português irrepreensível, esbanjou conhecimentos gerais. “Professor, gostaria que o senhor me desse exemplos de sistemas de outros países”, pediu a Alvino. O psicólogo começou pela Espanha. Marcola o cortou: “Não, não, não. A Espanha, deixa de lado, porque lá tem o ETA (grupo terrorista basco), tem o terrorismo, então o sistema prisional de lá está um pouco contaminado por isso. Dê outro exemplo.”

Alvino mencionou os Estados Unidos e foi interrompido outra vez. “Não, não, não. Os Estados Unidos têm todo aquele sistema eletrônico ultra-avançado, que também não quer dizer que deixe de ser desumano. E não se aplica ao nosso caso. Outro exemplo, professor.”

Autoconfiante, Marcola chegou a dar uma lição de moral no psicólogo de 63 anos. Alvino lhe contou que ficara desapontado com os presos de Mirandópolis, que tentaram uma operação de resgate pouco depois de começar um trabalho com eles. “É a lei da vida, professor”, corrigiu Marcola. “Se o senhor acredita nos seus propósitos, tem de continuar sua caminhada. Não pode se desapontar tão facilmente.” 

E emendou, com sinceridade desconcertante: “O senhor acha que, se de repente caírem as muralhas deste presídio, eu vou continuar aqui conversando com o senhor, feito um trouxa? Eu vou fugir.”

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