O renascimento da happy hour

O hábito voltou a lugares como o Largo do Café, mas faltam condições para se estender por toda a região

Quando cai a noite de sexta-feira, o coração financeiro do centro velho continua a pulsar. No triângulo formado por três bares da Rua Álvares Penteado e do Largo do Café, 400 pessoas sentam às mesas espalhadas pelo calçadão. São funcionários dos inúmeros escritórios da região ou estudantes das três faculdades instaladas por ali. Seus colegas e amigos já estão lá, e não vale a pena tentar voltar para casa na hora do rush. O lugar é limpo e tranqüilo e o cenário, elegante, emoldurado pelos belos prédios da região.

A happy hour do centro velho, que vem crescendo ano a ano, é a confirmação, na prática, dos manuais de arquitetura e urbanismo. “Condições físicas e o tipo de uso são dois fatores que estão associados”, diz José Eduardo de Assis Lefèvre, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. O ambiente agradável da happy hour do Largo do Café é apenas um fragmento. Não se estende por todo o centro porque não há uma continuidade dessas condições físicas e desse tipo de uso.

Coloque-se no lugar de alguém que goste de sair caminhando para olhar lojas e visitar espaços culturais – dois interesses quase universais, e dois excelentes motivos para ir passear no centro de qualquer grande cidade. Digamos que, depois de percorrer as lojas da Barão de Itapetininga e adjacências, no centro novo, ou depois de visitar o precioso Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro velho, ele venha apreciar o Teatro Municipal, na Praça Ramos de Azevedo.

A uma dúzia de quadras dali, ou meia hora de caminhada, está a Pinacoteca do Estado, com sua cafeteria dando para o Parque da Luz. No seu entorno, a distâncias não superiores a 10 minutos a pé, ficam o Museu de Arte Sacra, a Estação Pinacoteca e a Sala São Paulo. De novo atraído pelas compras, o caminhante pode voltar pela Rua Santa Ifigênia, ou partir no rumo do Bom Retiro, passando pelas Oficinas Culturais Três Rios, instaladas no prédio de 1898 da antiga Escola de Farmácia.

Seria um roteiro perfeitamente plausível, não fosse por um problema. No meio disso tudo, estão as 24 quadras que formam a Cracolândia. Seu ambiente degradado tira a graça do passeio, fazendo qualquer um recuar e desistir da travessia. “A ex-Cracolândia é um obstáculo entre os equipamentos culturais do centro e da Luz, entre o comércio do centro, o da Santa Ifigênia e o do Bom Retiro”, observa Andrea Matarazzo, subprefeito da Sé. Foi para integrar essas áreas que ele concebeu o plano de desapropriação e de incentivos fiscais para novos investimentos comerciais e habitacionais na região.

A idéia de demolir boa parte dos prédios da Cracolândia tem críticos. “Está totalmente ultrapassada a visão voluntarista do buldôzer, que passa sobre a cidade e quer atrair a participação de novos atores, desqualificando o que existe”, diz Nadia Somekh, coordenadora do Programa de Recuperação do Centro na gestão da ex-prefeita Marta Suplicy, e diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie. “É preciso entender organicamente a estrutura de produção da região, incorporar todos os segmentos, não só o dos empresários”, completa Nadia, que na sua gestão encomendou ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) um estudo sobre a estrutura produtiva e as potencialidades da região central.

“A idéia de fazer uma renovação urbana é importante”, diz o engenheiro Marco Antonio de Almeida, da Associação Viva o Centro. “É evidente que a desapropriação de uma área grande precisa de um plano. Em princípio, acho construtivo.”

Tecnicamente, a demolição de áreas subocupadas e bastante servidas por infra-estrutura e transportes – como é o caso da Cracolândia – é recomendável para causar verticalização e adensamento. Isso foi feito nos anos 80 em torno das estações de metrô Conceição e Jabaquara, na zona sul. Antes disso, nas décadas de 10 e 20, houve demolições para alargar a Avenida São João. As aberturas da Rua da Consolação e das Avenidas 23 de Maio e João Dias também demandaram demolições.

Segundo Lefèvre, que preside o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio, esta é a primeira vez que será demolida uma área tão extensa, em São Paulo, para uma renovação urbanística, sem estar associada a uma obra viária. “Ou se muda a condição física ou o tipo de uso”, aprova Lefèvre. “Neste caso, tem de ser uma mudança radical, de uma vez.”

Ao lado da medida mais drástica da Cracolândia, Andrea Matarazzo tem apostado também em estímulos mais “orgânicos”. O subprefeito da Sé atribui à pressão da fiscalização e à consciência dos comerciantes iniciativas em várias ruas do Bom Retiro de harmonizar as fachadas das lojas, uniformizar os luminosos e trocar a fiação aérea pela subterrânea, num projeto piloto da Eletropaulo. “Os comerciantes vão tomando consciência da importância disso”, observa. “Quando vêem que o vizinho fez, resolvem fazer também.”

Quase tudo está por fazer. Mas é preciso começar por algum lugar. 

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