Transporte: desafio na cidade que se espalha

 É evidente que em muitas situações o transporte público precisa ser melhorado…

Santiago mora no Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, e trabalha numa empresa de telemarketing perto da Estação da Luz, no centro da cidade. Todos os dias, Renata sai de casa às 9 horas, embora só entre no trabalho ao meio-dia.

Renata Santiago mora no Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, e trabalha numa empresa de telemarketing perto da Estação da Luz, no centro da cidade. Todos os dias, Renata sai de casa às 9 horas, embora só entre no trabalho ao meio-dia. O ônibus leva entre 1 hora e 1h30 de sua casa até o Terminal Capelinha, ainda na zona sul. Lá, ela pega outro ônibus, que vem pelo corredor da Santo Amaro e da 9 de Julho, e leva entre 1h15 e 2 horas para chegar ao Terminal das Bandeiras, no centro.

Renata sai do trabalho às 20 horas. O caminho de volta para casa lhe toma outras 2 horas. No total, ela passa cerca de 5 horas por dia dentro do ônibus. Aos 22 anos, com o segundo grau completo e um salário que lhe permitiria pagar faculdade, Renata sabe exatamente o que faria com esse tempo, se ele não lhe fosse roubado: um curso de recursos humanos, de dois anos de duração, que a faria progredir no trabalho. Mas isso é fisicamente impossível: “Não tenho como conciliar faculdade e serviço”, resigna-se a moça. “Espero a expansão do metrô”.

Vanessa Berise demora apenas meia hora no metrô de sua casa, na Penha, até o consultório onde trabalha, na Avenida Paulista. Mas isso é porque ela entra às 13 horas. Na volta, às 19 horas, ela é obrigada a pegar ônibus. Da Avenida Brigadeiro Luís Antônio até o Terminal Dom Pedro, leva de meia hora a 50 minutos. Daí pega outro ônibus até sua casa, que demora de 35 a 50 minutos. Ou seja, a volta consome quase uma hora mais que a ida. “Eu gostaria de voltar de metrô, mas ele fica superlotado no início da noite”, explica Vanessa, também de 22 anos. “O problema não é o ônibus, mas o trânsito”.

José Luís dos Santos, de 30 anos, mora no Jardim Damasceno, zona norte, e trabalha como estoquista na Rua Barão de Duprat, no centro, das 8 às 18 horas. Ele sai de casa às 6h30, pega um micro-ônibus até o Terminal Vila Nova Cachoeirinha e, de lá, um ônibus até o Largo do Paissandú, aonde chega às 7h45. Mas dramática é a volta. “Os ônibus lotam demais. Na Lapa entra muita gente”, descreve. “Às vezes, fico esperando o horário de pico passar. Chego em casa 20h30, 21 horas”.

Nos corredores pelos quais Renata atravessa a cidade, assim como no Largo do Paissandú, os ônibus formam filas. O problema não é sua frequência, mas a quantidade de gente, o trânsito e a simples distância. Os trens do metrô da Linha 3, que serve à zona leste, já atingiram, no horário de pico, o intervalo mínimo permitido pelo sistema: 101 segundos, o terceiro menor do mundo.

É evidente que em muitas situações o transporte público precisa ser melhorado – principalmente até os terminais, e entre bairros vizinhos. Mas o que as histórias de Renata, José Luís e Vanessa mostram é que a solução para o problema da circulação em São Paulo não está apenas na melhora do transporte público ou na expansão do metrô – ambas obviamente desejáveis. Não há transporte público nem sistema viário que comportem uma população de 11 milhões de habitantes – para não falar dos outros 9 milhões da Região Metropolitana – cruzando a cidade em busca de trabalho, ensino, saúde, consumo e lazer. É preciso que as pessoas encontrem isso mais perto de casa.

Na região da Sé, no centro de São Paulo, moram 20.115 pessoas e trabalham 257.385. São 12,8 empregos por morador. Já em Itaquera, populoso bairro da zona leste, há 201.512 habitantes e 17.495 empregados – 11,5 moradores por vaga. Mais ao fundo da zona leste, na Cidade Tiradentes, a equação piora: para uma população de 190.657 pessoas, há apenas 2.889 empregos – 66 moradores por vaga. No Jardim Ângela, bairro pobre da zona sul, moram 245.805 pessoas, mas só há 5.171 empregos – 42,5 habitantes por vaga.

“Fala-se do problema da circulação como se o uso e ocupação do solo não tivesse importância”, observa Raquel Rolnik, professora de urbanismo da USP e diretora de Planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento entre 1989 e 1992, na gestão de Luiza Erundina. “Os deslocamentos são definidos pelo modo de ocupação do solo. O modelo seguido no Brasil em geral e em São Paulo em particular contribui para a insustentabilidade da circulação, porque o desenvolvimento é ditado pela lógica do mercado”.

A começar pelos conjuntos habitacionais populares. Os governos oferecem aos empreendedores valor fixo por unidade habitacional – que no programa federal Minha Casa Minha Vida são R$ 52 mil nas regiões metropolitanas e R$ 48 mil nas cidades menores. Em geral mais fortes que as prefeituras, os empresários compram terrenos baratos em locais longínquos, quase rurais, formando “guetos” puramente residenciais, que obrigam os moradores a percorrer longas distâncias atrás de trabalho e o Poder Público a estender infraestrutura até lá, deixando vazios nas regiões mais centrais e no meio desses percursos.

Áreas puramente residenciais também são vendidas com sucesso às classes média e alta, por meio de condomínios de casas e edifícios cercados de “bosques” que representam o sonho de uma vida tranquila e segura. “Esses condomínios fechados são um atraso de vida”, critica o urbanista Jorge Wilheim, duas vezes secretário municipal de Planejamento e mentor do célebre Plano Diretor de Curitiba dos anos 60. “Criam-se guetos. Não há nada melhor que o espaço público, onde há convívio”.

Para Wilheim, essa é uma resposta errada não só do ponto de vista urbanístico, mas também da segurança. “Ninguém tem coragem de entrar numa rua deserta, mas numa cheia de gente não tem medo”, explica. “A salvaguarda de cada um de nós está nos outros.” Numa rua movimentada, em que as classes se misturam, o problema de segurança se resume a trombadinhas; já os condomínios fechados concentram a riqueza, sublinham a disparidade social e se transformam em alvos de invasões a mão armada, apontam vários urbanistas.

Por outro lado, a concentração do trabalho em determinadas áreas faz com que elas fiquem vazias de noite – um desperdício de infraestrutura e, em alguns casos, cenário de degradação.

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