A luta entre inteligência e “martírio”

Na hierarquia das lutas armadas, a guerrilha tem mais valor que o terror – que equivale a uma confissão de fraqueza militar

 

Em março de 2011, o FSB, serviço de inteligência russo, alertou o FBI para a presença de um perigoso checheno nos EUA. Tamerlan Tsarnaev foi interrogado por investigadores federais, estaduais e locais, que concluíram que ele não tinha ligação com terrorismo. Rússia e EUA não compartilhavam as mesmas hipóteses de ameaças, e tinham objetivos e estratégias divergentes. Cada um com seus problemas. 

Seis meses mais tarde, o FSB recorreu à CIA, insistindo no risco representado pelo ativista. A agência emitiu um alerta, mas o nome deu entrada na rede com um erro de digitação: Tsarnayev. Em janeiro do ano seguinte, Tsarnaev embarcou do JFK, em Nova York, para Moscou. Foi detectado, em função da passagem pelo FBI, mas seu nome não constava da lista dos 100 mais perigosos que passariam pelo aeroporto naquele dia, e o deixaram partir. Sem o “y” no passaporte, o checheno era considerado um problema russo. Nessa viagem, Tsarnaev, então com 24 anos, esteve com extremistas chechenos – passando batido pelo controle do próprio FSB.

Ao voltar aos EUA, em julho de 2012, de novo não fez soar o alarme. Em abril do ano seguinte, ele e seu irmão Dzhokhar, de 19 anos, detonaram explosivos em panelas de pressão dentro de latas de lixo na Maratona de Boston, deixando 3 mortos e 264 feridos. 

A história de Tamerlan Tsarnaev mostra como é tortuosa a cooperação internacional na área de inteligência. Se um erro de digitação pode pôr a perder um dispositivo de alerta, com nomes que agrupam tantas consoantes e vogais improváveis, as chances de sucesso são desanimadoras. Mas essa cooperação ainda é o maior ativo dos governos no combate ao terrorismo, por uma razão positiva e outra negativa.

A razão positiva é que os objetivos estão convergindo. Ao plantar uma bomba no avião russo que decolou de Sharm el-Sheik, no Egito, matando 224 pessoas, o Estado Islâmico (EI) atraiu a Rússia para uma aliança tática com a França, os Estados Unidos e seus demais parceiros na Europa e no Oriente Médio. Antes desse atentado, a prioridade russa era defender o regime de Bashar Assad contra suas múltiplas ameaças, incluindo o secular Exército Sírio Livre, apoiado por EUA e aliados, e a frente Al-Nusra, franquia da Al-Qaeda na Síria. 

A onda de atentados do EI encorajou a China a reconhecer que a morte de 16 pessoas há dois meses em uma mina de carvão na província de Xinjiang foi produto de atentado terrorista perpetrado por “extremistas estranteiros”. A população dessa província no oeste da China é composta em sua maioria por uigures, muçulmanos de origem túrquica. O tema, como tudo o que diz respeito à coesão da nação chinesa, é tabu. Em 2008, dias antes do início da Olimpíada de Pequim, um atentado em Kashgar, na fronteira de Xinjiang com o Paquistão, matou 16 policiais da etnia han (majoritária na China) e feriu outros 16 (número fatídico). 

Eu estava em Urumqi, capital de Xinjiang, e fui para Kashgar. Contratei uma estudante de medicina como intérprete. Depois de traduzir as perguntas que eu formulava com todo cuidado para alguns entrevistados sobre o que se passara nas vésperas e sobre a identidade étnica e religiosa na região, minha jovem intérprete ligou para o pai, também médico. Contou-lhe o que estávamos fazendo e, ao desligar, informou-me que não podia mais trabalhar para mim, que não aceitaria pagamento, que seu pai ordenara que voltasse imediatamente para casa, e não falasse mais comigo. O ataque de Xinjiang também empurra a desconfiada China para um arranjo com russos e ocidentais na área de inteligência.

Essa rede de cooperação é vital. Foi graças à Mukhabarat, a onipresente polícia política no Marrocos, que os franceses chegaram ao apartamento em Saint Denis, onde Abdelhamid Adaaoud e seus comparsas foram presos e mortos. Por meio de seu sobrenome, os investigadores marroquinos chegaram rapidamente a parentes do cérebro desse e de outros atentados recentes na Europa – ele foi o mentor também do ataque frustrado ao trem Amsterdã-Paris, em agosto.

Duas semanas antes da carnificina em Paris, Abdelhak Bassou, ex-diretor da Polícia Nacional do Marrocos e hoje consultor da área de segurança, me disse em Marrakech que há cerca de 2 mil ativistas do EI no reino. O Marrocos é, historicamente, uma das matrizes do Islã moderado e acolhedor de outras religiões, em especial o judaísmo, que ali floresceu sem ser incomodado ao longo de séculos. É provável que o EI conte com efetivos parecidos, se não maiores, em outros países do Norte da África, do Oriente Médio e da Europa, em células adormecidas prontas para entrar em ação. Diferentemente do ultravigiado e moderado Marrocos, esses ativistas se espalham por territórios desgovernados e exportadores de refugiados, como Líbia, Somália, Iêmen, Iraque e Síria. De modo que estamos falando de um esforço de vigilância sem precedentes no pós-guerra fria, que inevitavelmente conduzirá a invasões ainda mais agressivas contra a nossa privacidade, nossas proteções civis perante a polícia e a Justiça, nossa liberdade de movimento e nosso estilo de vida. Os trens, por exemplo, deixarão de ser o meio de transporte sem estresse que foi até aqui, e adotarão as rotinas de segurança dos aviões. Essa é uma das vitórias dos extremistas, para os quais a liberdade é ameaça.

Rio 2016

Uma pergunta que se tem feito é o grau de risco que o terrorismo representa para a Olimpíada do Rio. Na Copa do Mundo, a Polícia Federal, em parceria com agências de outros países, obteve sucesso em impedir a entrada de estrangeiros suspeitos de ligação com grupos terroristas, e o evento, que envolvia não uma cidade, como a Olimpíada, mas 12, transcorreu sem incidentes. 

Uma vantagem do Brasil em relação à França é a falta de evidências da existência de cidadãos brasileiros, morando no Brasil, aliciados por extremistas sunitas. Então a vigilância pode se concentrar no controle das fronteiras, que está muito longe do estado da arte, mas a presença das células no Brasil elevaria a ameaça a outro nível.

Em meados de 2003, passei seis semanas em Foz do Iguaçu, Puerto Iguazú, Cidade do Leste e Assunção, investigando a suposta existência de células terroristas xiitas na Tríplice Fronteira. O que encontrei foram doações de comerciantes para orfanatos xiitas no Líbano que, por pertencerem ao Hezbollah, tiveram suas contas bancárias incluídas na lista do terrorismo do Departamento de Estado americano. Além de uma disputa pela exclusividade da distribuição da marca de jogos eletrônicos Brick Game, que levou um dos concorrentes, Ali Ahmad Zaioun, a se associar a um agente de inteligência paraguaio. A dupla forjou provas de envolvimento na arrecadação de doações para o Hezbollah, por parte do comerciante rival, Assaad Ahmad Barakat, cujo irmão, Akram, estava construindo uma mesquita filiada ao grupo xiita, no sul de Beirute, que visitei depois. 

Além de essas doações não estarem diretamente destinadas a atividades terroristas, o Hezbollah, patrocinado pelo Irã, luta na Síria contra o EI, seu inimigo sunita.

Entretanto, de 2014 para cá, o EI intensificou sua mobilização. Diante da enorme comunidade sunita no Brasil, pode não ser provável, dado o ambiente não-sectário, mas não é impossível o nascimento de células do EI aqui. Lembro da perplexidade de argelinos, iraquianos, líbios e sírios, habituados ao secularismo e à falta de tensões sectárias, quando esses países mergulharam na violência religiosa e tribal. É algo que acontece com rapidez vertiginosa, a perda da inocência. 

No Brasil do século passado, em que o catolicismo, o candomblé e o protestantismo tradicional conviviam sossegadamente, eram impensáveis expressões de intolerância religiosa como as que começamos a presenciar, por parte de radicais evangélicos, com chutes a imagem da Virgem Maria, apedrejamento de criança vestida para ritual afro-brasileiro e uso político-eleitoral do moralismo religioso. 

Não que o Brasil possa ser arrastado para uma guerra sectária, mas poderemos, um dia, sim, ser surpreendidos pelo recrutamento de extremistas dentro do país, como já aconteceu com um jovem brasileiro na Bélgica, por exemplo. De maneira que PF e Abin precisam estar atentas.

No Mali, onde o Ansar Dine (Defensores da Fé), uma franquia da Al-Qaeda, tomou boa parte do país e avançava para Bamako quando foi contido pela intervenção francesa em janeiro de 2013, o ambiente religioso não poderia ser menos propício ao radicalismo e à intolerância. Durante a cobertura daquela guerra, lembro do meu guia me contando que seu pai e 10 de seus 11 tios eram fiéis muçulmanos. O 11.º tio era pai de santo. “Quando alguém na família tem algum problema sério, recorre a ele.” Diante do meu espanto, acostumado com os muçulmanos do Oriente Médio, que não admitem qualquer tipo de sincretismo ou de fissura em seu monoteísmo, meu amigo maliense explicou, com um largo sorriso: “Na África, até Deus é bagunçado”. 

O que quero dizer é que o jihadismo não requer uma adesão maciça da sociedade para se tornar uma sólida ameaça. No intervalo entre 11 de setembro de 2011 e o início dos bombardeios americanos, quando o Taleban ainda governava o Afeganistão, ouvi muitos afegãos que admitiam a sua frustração com a opressão representada por esse grupo, que obrigava os homens a usar barba e as mulheres a se cobrir com a burca, e proibia festas, televisão, música não-religiosa, soltar pipas e praticar buzkashi, o tradicional esporte no qual cavaleiros tentam atravessar o campo do adversário levando uma carcassa de animal. Os afegãos são um povo alegre, e esses ex-seminaristas lhes impuseram a versão drástica da vida que aprenderam em escolas religiosas financiadas pela Arábia Saudita, inteiramente alheia à cultura local. Mesmo assim, 14 anos depois da queda do regime, o Taleban tem exercido crescente capacidade de desestabilização. A doutrina wahabita, que professam, é a mesma da Al-Qaeda e do EI. 

A cooperação na área de inteligência, como eu dizia, é central também por um aspecto negativo, que são as limitações do outro pilar da estratégia de combate ao terrorismo: a ação militar. A renovada intensidade dos bombardeios franceses e o engajamento russo nessa campanha são mais do mesmo. Há mais de um ano os EUA e uma dezena de países bombardeiam alvos do EI no Iraque e na Síria. Essas missões diárias impediram o grupo de avançar até Bagdá e de ocupar mais territórios. Mas não o desalojaram das cidades e regiões inteiras que ele tomou. Nem poderiam. Para se retomar território, é preciso lutar. Reconquistar cidades requer guerra de guerrilha, quarteirão por quarteirão. Nela, a superioridade tecnológica, a soberania aérea, a assimetria de meios entre uma potêcia militar e uma milícia se reduzem drasticamente. É fuzil contra fuzil, e o domínio do terreno e a disposição de matar ou morrer, que os combatentes do EI têm de sobra, são predicados decisivos. Nenhum país reúne condições de engajar seu Exército nessa luta; Iraque e Síria, porque seus contingentes sunitas nas áreas ocupadas pelo EI não vêem graça em lutar por um regime xiita ou alauita, respectivamente; EUA, Europa e Rússia, porque suas opiniões públicas não aceitariam as mortes de seus jovens em um conflito insano como esse, mesmo que esteja associado à ameaça terrorista em casa.

Os EUA têm treinado e equipado milhares de guerrilheiros curdos, de combatentes do Exército Sírio Livre (ESL) e de soldados xiitas iraquianos. Os primeiros resultados têm surgido. Os iraquianos expulsaram em abril o EI de Tikrit, 180 km ao norte de Bagdá; o ESL, juntamente com a Al-Nusra, tem recuperado território; na véspera dos atentados de Paris, 7.500 peshmergas, guerrilheiros curdos do Iraque, retomaram a cidade de Sinjar, de 80 mil habitantes, reduto da minoria yazidi, que era guarnecida por apenas 500 combatentes do EI, assumindo o controle sobre um entroncamento que dá acesso tanto a Mossul, segunda cidade do Iraque e a maior ocupada pelo EI, com 2,5 milhões de habitantes, quanto a Raqqa, a “capital do califado”, na Síria. 

Essas derrotas no terreno induzem o EI a deslocar seu esforço da guerra de guerrilha para as ações terroristas. Na hieraquia das lutas armadas, a guerrilha tem mais valor que o terror – que equivale a uma confissão de fraqueza militar. Mas transporta o conflito para onde quer que alguém esteja disposto a morrer como “mártir”.

 

Publicado no jornal Valor Econômico. Todos os direitos reservados

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