‘Até aqui o protegemos, agora vamos levá-lo’

Pedido de extradição paraguaio converteu Barakat de protegido em detido

 

FOZ DO IGUAÇU – Faz um ano hoje. Eram 7 da manhã daquele sábado, 22 de junho. Todos estavam dormindo no apartamento da família Barakat. Um dos agentes da Polícia Federal que faziam a escolta de Assaad, para evitar que fosse seqüestrado pela inteligência antiterrorista paraguaia, tocou a campainha. Mostrou o mandado de prisão, e disse mais ou menos o seguinte: “Durante todo esse tempo, nós o protegemos. Agora, temos de levá-lo.”

Marlene ficou olhando pela janela, enquanto o marido saía do prédio, sem algemas, rodeado pelos três agentes, e entrava no carro da PF. O pedido paraguaio de extradição não mudou apenas a condição de Barakat, de protegido a preso. Mas também a do Brasil, de espectador a ator. O País tem agora de julgar se está ou não diante de um caso concreto de envolvimento com terrorismo.

Desde os atentados contra a embaixada israelense em Buenos Aires, em 1992, e a Associação Mutual Israelita-Argentina (Amia), em 1994, também na capital argentina, quando a Tríplice Fronteira foi apontada como zona de passagem e apoio aos terroristas, o Brasil tem adotado uma atitude defensiva, do vizinho que não quer que o problema seja transferido para seu quintal.

Relatório confidencial da Justiça argentina datado de março deste ano, obtido pelo Estado, indica Barakat – que entre 1993 e 95 estava no Líbano – como um entre vários militantes e simpatizantes do Hezbollah que poderiam ter prestado algum tipo de apoio aos terroristas.

Os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington reavivaram essas suspeitas. Depois daquele dia, Barakat, que tem escritório, lojas e apartamentos alugados em Ciudad del Este, não voltou mais ao Paraguai, recolhendo-se em sua casa em Foz do Iguaçu. Temendo seqüestro e sentindo-se perseguido por supostos agentes paraguaios, chegou a passar 18 dias com a mulher e os três filhos em Curitiba. Mudou-se da casa muito perto da Ponte da Amizade para um apartamento no centro de Foz e passou a ter proteção da PF.

A remessa de dinheiro para instituições assistenciais geridas pelo Hezbollah é algo corriqueiro na comunidade libanesa xiita, não só na Tríplice Fronteira, mas ao redor do mundo. Comerciantes razoavelmente bem-sucedidos costumam “adotar”, à distância, um ou mais órfãos de “mártires” da luta contra Israel, enviando anualmente US$ 500 por criança.

Na decisão sobre o destino de Barakat, a ser tomada pelo ministro da Justiça, o crucial é definir qual o porte de sua atividade de arrecadação e remessa de dinheiro. Os agentes da Secretaria de Prevenção e Investigação do Terrorismo do Paraguai tratam Barakat como o chefe de um vultoso esquema de arrecadação de fundos para o Hezbollah, que teria somado milhões de dólares por ano.

Os indícios que apresentam, no entanto, são frágeis. Foi encontrado no escritório de Barakat em Ciudad del Este um pergaminho vermelho, no qual o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, agradece por doações a um “programa de tutores dos filhos dos mártires”. Nasrallah dirige-se a um público genérico: “Agradeço-lhes…”

“Segundo nossos informantes no Oriente Médio, um pergaminho dessa cor só é enviado a quem doa mais de US$ 10 milhões”, disse ao Estado um agente paraguaio, que pediu para não ser identificado. O Estado consultou no dia 11 a assessoria de imprensa do Hezbollah em Beirute, para saber se isso é verdade ou não. Até sexta-feira, não obtivera resposta.

Comerciantes árabes de Ciudad del Este confirmaram que, antes do 11 de setembro, pergaminhos como esse eram exibidos, com orgulho, em lojas e casas, como prova da generosidade e sinal de status na comunidade. Também não era incomum ver caixas nas galerias e mesquitas, para arrecadar ajuda para essas entidades. Depois dos atentados nos EUA, quando o Departamento de Estado recolocou o Hezbollah na lista negra do terrorismo internacional e, em sua caçada global, voltou a mirar na Tríplice Fronteira, tudo isso desapareceu.

A Justiça paraguaia abriu o sigilo telefônico do escritório de Barakat. As contas telefônicas de fevereiro a maio de 2001 foram obtidas pelo Estado. Os agentes paraguaios lançam suspeitas sobre algumas ligações, como 18 chamadas para a Alemanha entre 12 e 14 de março; 2 para a Bulgária e 1 para a Romênia em junho; e algumas para a Venezuela e Colômbia.

“São ligações normais de comércio e para parentes, e nada mais”, afirmou Barakat na quinta-feira, numa mensagem para o Estado, escrita em sua cela na Penitenciária de Papuda, em Brasília. Marlene Barakat lembra-se de que em 1995 o marido esteve na Romênia, à procura de oportunidades de negócios.

Outro indício usado pela inteligência paraguaia contra Barakat são remessas de dinheiro para o Líbano feitas por outro comerciante xiita libanês, Sobhi Mahmoud Fayad. Os agentes paraguaios apontam Fayad como o “número 2” de Barakat. Ambos dizem que eram apenas amigos, e reconhecem que Barakat às vezes usava a conta de Fayad para enviar dinheiro para o Líbano.

O Estado obteve cópias de três dessas remessas, feitas em 1999. Os valores oscilam de US$ 15 mil a US$ 25 mil, e seus destinatários são Hassan Hussein Said Nabilse e Khalil Saleh. De acordo com Fayad e Barakat, Saleh é um grande fornecedor, com escritórios no Líbano, na China e no Paraguai. Nabilse, cunhado de Barakat, lhe teria feito um empréstimo, e a remessa seria parte do pagamento.

No escritório de Fayad, foi encontrada uma prestação de contas da “organização beneficente social” O Mártir, a mesma que recebeu as doações que motivaram a carta de agradecimento do líder do Hezbollah. Dirigido “aos que cumpriram com o chamado do enviado de Deus”, o comunicado impresso diz como a entidade gastou os cerca de US$ 3,5 milhões que recebeu ao longo de 2000: US$ 1,3 milhão para sustentar 592 “famílias de mártires”; US$ 395 mil em roupas e presentes; US$ 1,2 milhão na educação de 1.215 órfãos, até o curso superior; US$ 82 mil em saúde e US$ 540 mil em reparos de moradias.

Os agentes paraguaios interpretam esse papel como prova de que Barakat, por intermédio de seu “número 2”, arrecadou e enviou US$ 3,5 milhões para o Hezbollah. Ao que tudo indica, no entanto, a prestação de contas se refere ao total de doações dos que contribuíram naquele ano.

Fayad foi condenado a 6 anos e meio de prisão, por sonegação de impostos. Como não há lei antiterrorista no Paraguai – nem no Brasil, por sinal -, os acusados de envolvimento com o Hezbollah têm sido presos ou por sonegação ou por falsificação de produtos. É virtualmente impossível encontrar, em Ciudad del Este, um comerciante que não tenha praticado um desses crimes.

 

Tanto Fayad quanto Barakat afirmam ter colocado os impostos em dia, depois de serem indiciados. Tarde demais.

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