Estado Islâmico: o que é, por que atacou a França e o que fazer

Como se chegou a essa situação, e como sair dela

Origens

Em março de 2003, nas vésperas da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, levas de jihadistas cruzaram a fronteira entre a Síria e o Iraque para resistir à ocupação americana. Eu assisti isso ao vivo na TV estatal iraquiana, ainda sob o regime de Saddam Hussein. Esses radicais islâmicos haviam acabado de ser soltos de prisões na Síria, cujos 17 organismos de segurança interna controlavam todos os passos dos religiosos – a única fonte de oposição ao regime. O plano de Maher Assad, o irmão de Bashar que comanda as forças de segurança, era mergulhar o Iraque pós-Saddam no caos e demonstrar a utilidade das ditaduras como anteparo do extremismo, para não acabar como seu vizinho.

Os radicais sírios, juntamente com os de outros países da região atraídos para essa “guerra santa”, formaram células que se aglutinaram na Al-Qaeda no Iraque (AQI). A nova filial do grupo foi anunciada oficialmente em outubro de 2004 pelo jordaniano Abu Musab al-Zarqawi, enviado ao país por Osama bin Laden no ano anterior, para recrutar radicais sunitas na luta contra a maioria xiita, beneficiada pela queda de Saddam e pelo plano de implantar alguma forma de democracia no Iraque.

Os líderes tribais sunitas inicialmente receberam bem a Al-Qaeda, mas, com o passar do tempo, perceberam que sua presença representava para eles a perda de poder local, assim como a imposição de um código de conduta rígido demais. Em 2005, aliaram-se aos americanos e criaram o movimento Despertar Sunita. Com armas e soldos de US$ 300 pagos pelos EUA, derrotaram  a AQI e expulsaram seus integrantes. Em 2008, os jihadistas sírios voltaram para seu país e foram presos de novo.

Em junho de 2011, quando as manifestações pró-democracia fugiam ao controle do regime sírio, os irmãos Assad voltaram a lançar mão do artifício. Soltaram os jihadistas, que foram se concentrar no norte da Síria. Durante mais de três anos, numa aliança tácita, os radicais sunitas lutaram não contra o regime alauíta de Assad, mas contra os sunitas – porém seculares – do Exército Sírio Livre. O estrategama tornou parcialmente verdadeira a versão, inicialmente falsa, de que a ditadura síria enfrentava o extremismo islâmico, e deixou o Ocidente de mãos atadas, ainda mais depois do fiasco da Líbia pós-Kadafi, convertida em Estado falido.

Rutpura com Al-Qaeda

Ao anunciar a formação do Estado Islâmico no Iraque e no Levante, em abril de 2013, seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, doutor em Estudos Islâmicos pela Universidade de Bagdá, declarou que a Frente Al-Nusra, filiada da Al-Qaeda na Síria, passaria a fazer parte do novo grupo. O líder da Al-Nusra, Abu Mohamed al-Julani, no entanto, não aceitou essa incorporação. A disputa culminou na retirada da franquia da Al-Qaeda ao Estado Islâmico, em fevereiro de 2014, quando o grupo já estava combatendo a Al-Nusra no terreno.

Doutrina

Estado Islâmico e Al-Qaeda têm em comum a doutrina wahabita. Originária da Arábia Saudita, ela prega o retorno a um Islã supostamente “puro”, livre de sincretismos, e ao modo de vida do profeta Maomé. Entretanto, a Al-Qaeda luta pela derrubada de governos seculares em países muçulmanos e sua substituição por emirados islâmicos. Já o Estado Islâmico defende o estabelecimento de um califado sunita que passe por cima das fronteiras estabelecidas na 1.ª Guerra Mundial. Ao avançar da Síria para o Iraque, combatentes do Estado Islâmico declararam estar apagando as fronteiras de Sykes-Picot, o acordo secreto entre ingleses e franceses que em 1915 loteou o Oriente Médio entre eles. Enquanto isso, os árabes lutavam contra os turcos otomanos, em aliança com os ingleses e franceses, acreditando na promessa de que, ao final da guerra, teriam o seu Estado independente. Essa traição criou um ressentimento que acompanha muitos árabes até hoje, atualizado e reforçado pela criação em 1948 do Estado de Israel, com apoio ocidental, e pela ocupação de Jerusalém em 1967. Daí o tremendo apelo da narrativa do Estado Islâmico.

Financiamento

Inicialmente, o EI, assim como a Al-Nusra, recebeu dinheiro de famílias ricas da Arábia Saudita e de outras monarquias árabes do Golfo Pérsico, cujos governos evitaram envolver-se diretamente, para não confrontar os EUA e seus aliados europeus, mas deram seu aval a esse apoio. Isso porque esses grupos radicais sunitas representam uma contenção ao Irã, a potência regional xiita e principal adversário das monarquias sunitas. A seita minoritária alauíta, de Assad, deriva da corrente xiita. EI e Al-Nusra também tiveram apoio logístico da Turquia de Recep Tayyip Erdogan, que rompeu com Assad no começo das manifestações e sua violenta repressão.

Essa ajuda aparentemente cessou, e hoje o EI custeia suas atividades com três fontes: 1) confiscos e saques a empresas, casas e bancos dos territórios que ocupa, principalmente da filial do Banco Central de Mossul, segunda maior cidade do Iraque, tomada em junho de 2014, na qual encontrou US$ 500 milhões; 2) cobrança de resgates pelos sequestros, da ordem de 100 milhões de euros, pagos por vários países europeus, e recusados por EUA e Inglaterra, o que levou às decapitações supostamente por não ter atendidas exigências políticas, que na verdade só foram apresentadas depois da negativa do dinheiro; 3) a venda no mercado clandestino de petróleo dos campos controlados pelo grupo.

Efetivo

No segundo semestre do ano passado, a CIA estimou que o EI contava com 20 mil a 31,5 mil combatentes na Síria e no Iraque. Recenemtente, o FSB, serviço de inteligência russo, calculou que o grupo tem 50 mil combatentes na Síria e 30 mil no Iraque. Há duas semanas, um consultor de segurança e ex-diretor da Polícia Nacional do Marrocos me disse que há cerca de 2 mil militantes do EI no país, minuciosamente vigiado pela Mukhabarat, a polícia política. Em outros países árabes do Norte da África e do Oriente Médio, é provável que esse efetivo seja equivalente, se não maior. Países da Europa Ocidental e mesmo os Estados Unidos também abrigam militantes do grupo, recrutados não só nas comunidades de origem árabe e muçulmana, mas mesmo entre jovens que não têm essa origem.

Por que a França

Aviões franceses bombardearam no início da semana campos de petróleo e de gás sob controle do EI em Deir ez-Zor, no leste da Síria, atacando uma fonte importante de financiamento do grupo. O país também anunciou o destacamento de seu único porta-aviões, o Charles de Gaulle, para o Golfo Pérsico, para apoiar os bombardeios contra alvos do EI na Síria e no Iraque, na coalizão da qual fazem parte também Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Austrália, Turquia, Arábia Saudita, Catar, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Jordânia.

Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, a França tem assumido um papel de protagonismo na luta contra o radicalismo islâmico. O país ocupava a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU naquele momento. Coube ao embaixador francês Jean-David Levitte, que entrevistei há três semanas, redigir a resolução que autorizou o ataque americano ao Afeganistão. A mudança de governo, do conservador Nicolas Sarkozy para o socialista François Hollande, não mudou essa posição, que se tornou política de Estado.

Além disso, a França abriga uma grande comunidade de filhos de imigrantes magrebinos – de suas ex-colônias Argélia, Tunísia e Marrocos -, muitos deles vivendo em áreas marginalizadas da periferia de cidades como Paris e Marselha.

Os franceses consideram que os moradores do país, independentemente de suas origens, devem assimilar a sua cultura. Em outros países, convive-se mais facilmente com diferenças culturais. Esses jovens já não pertencem aos países de seus avós, mas também não pertencem à França. Estão em um limbo cultural. Leis impedem a exibição em lugares públicos de sinais de religiosidade, aí incluído o véu islâmico das mulheres. Uma moça de família conservadora muçulmana impedida de ir à escola sem o véu se sente como uma jovem brasileira com os seios à mostra.

Como enfrentar

Os bombardeios americanos, iniciados em agosto de 2014 no Iraque, como reação à carnificina causada pelo EI, que ameaçava levar as minorias yazidi, cristã e curda, foram importantes para evitar que o grupo avançasse até Bagdá. Eu estava no Curdistão iraquiano naquele momento, e acompanhei a retomada da importante represa de Mossul pelos curdos, graças aos bombardeios americanos. Mas bombardeios, por si só, não recuperam cidades, nas quais os combatentes se misturam a populações civis. Para retomar cidades, é preciso guerra de guerrilha, rua por rua, que fatalmente conduz a um grande número de baixas de ambos os lados.

Nos seus avanços no norte da Síria e do Iraque, o Estado Islâmico contou não só com camionetes japonesas novas, presente de seus patrocinadores do Golfo, com armamento pesado confiscado dos exércitos sírio e iraquiano e com combatentes experimentados na guerra de 2003 no Iraque e em outros conflitos do mundo árabe-muçulmano. Eles também lançaram mão de uma arma psicológica: os fuzilamentos aleatórios, decapitações exibidas em vídeos, estupros e escravização de mulheres, mutilação de crianças. A simples aproximação do EI fez as tropas iraquianas fugir sem lutar. Muitos soldados sunitas aderiram ao grupo, sem vontade de defender um Estado iraquiano dominado pela maioria xiita.

Os combatentes do EI lutam sem medo de morrer, já que a morte no campo de batalha representa a garantia do paraíso. Até aqui, nenhum Exército regular, mas apenas milícias com recursos limitados demonstraram coragem e disposição de enfrentar o EI: o Exército Sírio Livre, cujos combatentes lutam pela democracia e pela liberdade em seu país e, depois de quatro anos de guerra civil, não têm mais como recuar nem mais nada a perder; a Al-Nusra, que cultiva a mesma fé que o EI; a milícia xiita libanesa Hezbollah, patrocinada pelo Irã, cujos combatentes são veteranos de guerras contra Israel e também veem a morte como redenção; e os guerrilheiros curdos, cuja cultura inclui a tradição guerreira, e que lutam pela sobrevivência de sua etnia.

Os Estados Unidos e seus aliados treinaram e equiparam cerca de 5 mil combatentes árabes e 20 mil curdos no nordeste da Síria. No Iraque, os peshmergas, como são chamados os guerrilheiros curdos, também receberam armas e treinamento. Na semana passada, 7.500 peshmergas, apoiados por bombardeios americanos, avançaram sobre a cidade de Sinjar, no norte do Iraque, cercando-a por três flancos, no esforço de retomá-la do EI, que, segundo estimativa das forças americanas, contava com cerca de 500 combatentes na área. Sinjar fica no entrocamento de uma malha rodoviária que dá acesso tanto a Mossul, o principal reduto do EI no Iraque, quando a Raqqa, a “capital do califado”, na Síria. O avanço dos peshmergas tem a ambição de obrigar o EI a reforçar a rota para uma das duas, desguarnecendo a outra.

Esse é um esforço militar significativo, que pode dar início a uma longa campanha de retomada de cidades e de território – com grande custo em vidas humanas.

Quando um conflito se conflagra, sobretudo com um grupo com o qual não há o que negociar, como é o caso do EI, não há mais a fazer, além de matar o inimigo e destruir o alvo. É preciso evitar chegar-se a esse ponto. Para isso, será necessário adotar uma estratégia de prevenção do financiamento de grupos como o EI e de seu recrutamento.

A prevenção do financiamento requer uma definição clara dos interesses nacionais por parte dos EUA e da Europa – o que não ocorreu nos últimos anos. A aliança incondicional com as monarquias árabes do Golfo e o confronto, igualmente automático, em relação ao Irã, permitiram o crescimento da Al-Qaeda e do EI. O presidente Barack Obama entendeu isso. Depois de eleito, em 2008, anunciou que estendia a mão ao Irã, mas o país, sob Mahmud Ahmadinejad, não estava pronto para isso. Foi preciso que as sanções contra o Irã fizessem efeito, e o líder espiritual Ali Khamenei permitisse a eleição de um presidente moderado, Ali Rouhani, em 2013, para que essa dinâmica mudasse. Só sob a ameaça do isolamento, simbolizada pelo acordo nuclear com o Irã, foi que a Arábia Saudita e seus vizinhos cortaram a ajuda aos grupos sunitas radicais. Obama teve de enfrentar o nervosismo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, de Israel, e a pressão da influente comunidade judaica, para alterar esse alinhamento. Israel tem o Irã como principal hipótese de ameaça.

Será preciso, também, coibir a venda clandestina de petróleo no Mar Mediterrâneo.

O recrutamento foi facilitado pelo apoio logístico da Turquia ao EI e à Al-Nusra. Foi necessária forte pressão da Otan, da qual a Turquia é membro, e um aparente acordo segundo o qual os turcos não seriam criticados pela repressão aos curdos, para que esse apoio fosse reduzido significativamente.

Mas a capacidade de recrutamento do EI tem outro componente mais difuso e complexo: a falta de perspectivas de jovens, não só no mundo árabe-muçulmano, mas também nas sociedades ocidentais. A desestruturação de famílias, a falta de assistência psicossocial, combinadas com os novos estímulos e a facilidade de comunicação representadas pelos meios digitais, ajudam a explicar o êxito da mensagem carregada de suposto heroísmo do EI. Ela dá um propósito a vidas que não o encontraram em outro lugar. É preciso enfrentar esse desamparo tanto quanto os homens armados no terreno.

Assista ao debate The Future of Security

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