As instituições dos EUA e do Reino Unido são mais fortes que seus líderes

Até outro dia, Grã-Bretanha e Estados Unidos eram as democracias mais antigas e mais estáveis do mundo. Agora elas são apenas as mais antigas. O primeiro-ministro britânico é acusado pela Corte Suprema de induzir a rainha da Inglaterra a suspender ilegalmente o Parlamento. O presidente americano é submetido a um processo de impeachment por colocar seu interesse pessoal acima do interesse nacional.

Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em reunião no G-7
Foto: Carlos Barria/ Reuters

A história começa não com Trump, mas com um filho do então vice-presidente Joe Biden. Em 2014, Hunter Biden se tornou membro do conselho de administração da Burisma, maior empresa privada de petróleo e gás da Ucrânia. 

Envolvida em casos de corrupção — problema endêmico na Ucrânia —, a Burisma afirmou precisar de executivos internacionais para introduzir práticas de governança na empresa. Hunter ficou no conselho até este ano e recebeu US$ 850 mil, por meio da empresa de um sócio. 

Quando era vice-presidente, Biden pressionou o governo ucraniano a demitir o então procurador-geral Viktor Shokin, cuja equipe investigava o envolvimento da Burisma com corrupção. Shokin era acusado, ele próprio, de corrupção. Caso contrário, o governo americano bloquearia ajuda de US$ 1 bilhão para a Ucrânia. Aliados dos EUA e o Fundo Monetário Internacional fizeram pressões semelhantes, e Shokin caiu.

Não surgiram, até agora, evidências de envolvimento de Hunter Biden em corrupção. Os republicanos, no entanto, viram nessa história uma oportunidade de virar a mesa.

Em julho, um dia depois da apresentação do relatório do procurador especial Robert Mueller sobre a investigação dos vínculos de Trump com a Rússia e sua interferência nas eleições de 2016, ele telefonou para o recém-eleito presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Antes de telefonar, suspendeu uma ajuda de US$ 391 milhões para a Ucrânia se defender da contínua ameaça russa, aprovada pelo Congresso.

No telefonema, conforme a transcrição fornecida pela Casa Branca, Trump diz que os EUA têm ajudado a Ucrânia muito mais que a Europa e que precisa de um favor: que Zelensky “ou seu pessoal” conversem com o procurador-geral William Barr e com seu advogado pessoal, Rudolph Giuliani, e reabra as investigações sobre Biden.

O governo ainda tentou evitar que o alerta de um agente na Casa Branca chegasse à Comissão de Inteligência da Câmara, a quem cabe fiscalizar as ações do Executivo nesse campo, conforme prevê a lei.

A Rússia é um dos principais inimigos dos EUA; Biden, um dos principais rivais de Trump na corrida presidencial. É nesse sentido que se argumenta que Trump trocou o interesse nacional pelo pessoal.

O pedido de impeachment é aprovado por maioria simples na Câmara. Os democratas já têm votos suficientes. No Senado, são necessários dois terços, o que significa que 20 dos 53 republicanos teriam de aderir. Isso é hoje impensável.

A melhor estratégia para os democratas seria estender ao máximo o caso na Câmara, para colocar a maior fatia possível do eleitorado contra o presidente e assim constranger os senadores a se voltar contra ele. Trump não é do tipo que sofre calado. O cenário provável é de terra arrasada, nesse mais de um ano de campanha até novembro do ano que vem.

O objetivo de Johnson ao suspender o Parlamento, há um mês, era ter liberdade para ameaçar a União Europeia com uma saída sem acordo — como se isso não fosse pior para o seu país do que para o bloco. A maioria dos parlamentares rejeita essa possibilidade. 

A Corte Suprema anulou a suspensão por unanimidade, com base em uma lei de 1611, segundo a qual “o rei não tem prerrogativa a não ser aquela que a lei da terra lhe concede”.

Os relatos demonstram por si só que as instituições desses dois países são mais fortes do que seus governantes. Instabilidade não significa ruptura. Mas perturba.

Publicado no Estadão. Copyright: O Estado de S. Paulo. Todos os direitos reservados.

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