Crises sem ligação na Bolívia e no Chile

Diante da profusão de protestos de rua e reviravoltas políticas na América do Sul, há uma tendência de buscar um elo, uma explicação única. Não existe. Cada país vive seu momento histórico singular, como mostram os dois exemplos desta semana: Bolívia e Chile. 

No Chile, os protestos foram alimentados pela percepção de aumento da desigualdade, custo alto do ensino e precariedade das aposentadorias
Foto: Alberto Valdés / EFE

O presidente Evo Morales foi forçado a renunciar depois de perder o apoio das Forças Armadas, em meio a protestos contra sua insistência em obter a qualquer custo o seu quarto mandado consecutivo desde 2006. Evo, como é conhecido na Bolívia, denunciou um “golpe cívico”. Foi ele o autor do golpe.

Depois de se eleger em 2005, Evo seguiu a cartilha de permanência no poder de seu tutor, Hugo Chávez. Promulgou nova Constituição, prevendo reeleição presidencial. Elegeu-se novamente. Considerou que era o primeiro mandato, sob a nova Constituição (como se não presidisse o mesmo país). 

Perto do término do que para ele era o segundo mandato, em 2016, convocou plebiscito para mudar a Constituição e permitir a reeleição ilimitada. A maioria disse “não, obrigado”. No ano seguinte, o Tribunal Constitucional, controlado por Evo, deu uma interpretação patética: impedir o presidente de se recandidatar violava os seus direitos políticos.

Portanto, a candidatura de Evo na eleição de outubro passou por cima da Constituição e da vontade da maioria. Mesmo assim os bolivianos esperaram a oportunidade de derrotá-lo nas urnas. Na noite da eleição, o site do Tribunal Supremo Eleitoral indicava vitória de Evo por margem que o levaria ao segundo turno contra Carlos Mesa. Com apoio dos eleitores dos outros candidatos, Mesa podia vencer no segundo turno. 

O site parou de divulgar a apuração. Voltou 24 horas depois, com uma contagem que indicava reeleição de Evo no primeiro turno. Auditoria da Organização dos Estados Americanos, pedida pelo próprio governo, considerou esse resultado “estatisticamente improvável” — eufemismo para fraude. 

Evo ainda quis convocar novas eleições. Só então a imensa paciência dos bolivianos acabou e eles foram às ruas. Acordo entre governo e oposição na quinta-feira abre caminho para a realização de novas eleições. Sem Evo, “por supuesto”.

Diferentemente da Venezuela, a “era Evo” não foi marcada por uma condução ruim da economia. Mesmo depois do pico de 6,8% em 2013, que marcou o fim do superciclo das commodities, o PIB continuou crescendo entre 5,5% e 4,2% até 2018. 

A desigualdade diminuiu. O índice Gini, no qual 0 significa igualdade total e 1 desigualdade máxima, caiu de 0,567 em 2006 para 0,440 em 2017. O principal problema de Evo foi não aceitar a alternância de poder.

No Chile, os protestos foram alimentados pela percepção de aumento da desigualdade, custo alto do ensino e precariedade das aposentadorias. 

A primeira percepção é falsa. Com exceção de ligeiros aumentos em 2009 e 2015, o índice Gini tem caído continuamente no Chile, de 0,572 em 1990, último ano da ditadura, para 0,466 em 2017 (último dado do Banco Mundial). Em 2006, os 20% mais ricos ganhavam 10 vezes mais que os 20% mais pobres; em 2017, 8,9 vezes. 

Assim como nos EUA, na China e no Reino Unido, por exemplo, não existe universidade gratuita no Chile. O último governo de Michele Bachelet ampliou de 40% para 50% a parcela dos estudantes mais pobres com direito a bolsas integrais. O restante dos que não podem pagar é coberto por crédito educativo, o que gera muito endividamento. 

A privatização da Previdência, conduzida nos anos 80 por José Piñera, irmão do atual presidente, levou muitos chilenos a se aposentar com apenas o equivalente a R$ 1.000. Some-se a isso o baixo crescimento econômico dos últimos anos: 1,8% em 2014, 2,3% em 2015, 1,7% em 2016 e 1,3% em 2017. Ele se deveu à queda do preço internacional do cobre, principal produto de exportação chileno, e a erros da política econômica de Bachelet, que aumentou os impostos para as empresas e com isso inibiu  os investimentos. 

Piñera reviu essas medidas e em seu primeiro ano de governo, 2018, o crescimento subiu para 4%. Mas presidentes costumam pagar pelos erros de política econômica de seus antecessores.

Agora, governo e oposição chegaram a um acordo para convocar uma Constituinte. A atual Constituição tem um problema de legitimidade: foi promulgada em 1980, na ditadura militar. O general Augusto Pinochet cristalizou nela suas políticas econômicas liberais, incluindo a Previdência privada. Só com três quintos dos votos se pode mudá-las, algo que nenhuma coalizão jamais obteve.

Ajustes devem ser feitos. Mas os chilenos precisam de sabedoria para não perder conquistas importantes, que seus vizinhos ainda lutam para alcançar.

Publicado no Estadão. Copyright: O Estado de S. Paulo. Todos os direitos reservados.

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