EUA, China e as regras comerciais

O Órgão de Apelações da Organização Mundial do Comércio (OMC) fechou no dia 10, com o fim do mandato de dois de seus juízes. Ele estava com três juízes, o número mínimo para seu funcionamento, e agora ficou apenas com um. Foi desenhado para ter sete juízes, mas os Estados Unidos se recusam a aprovar novas nomeações. 

De acordo com Renato Flôres, ex-membro do grupo de peritos da OMC, há pelo menos 15 anos sucessivos governos americanos se queixam das decisões dos juízes de apelação. Flôres concorda que os juízes em alguns casos extrapolaram as normas da OMC em decisões que prejudicaram os EUA.

Embora as pressões já fossem fortes no governo Barack Obama, atingiram o clímax com o presidente Donald Trump. Os americanos argumentam que os países devem chegar a soluções negociadas para seus conflitos comerciais, em vez de submetê-las a um julgamento que atropela sua soberania.

Esse foi o tema de um debate do qual participei na conferência Atlantic Dialogues, em Marrakech, no fim de semana passado, que partiu da pergunta “o sistema de comércio baseado em regras sobreviverá?” 

Para Renato Flôres, não há dúvida de que um sistema de regras terá de existir, embora não o atual. “O poder hegemônico precisa de regras para ter credibilidade”, argumentou. “Os EUA estão fazendo o que qualquer potência hegemônica faria”, disse Flôres, da Fundação Getúlio Vargas,. “O sistema já não os favorece e querem mudá-lo.”

A questão, disse o especialista, é quais países eles vão alienar e com quais vão se aliar na criação dessa nova ordem. Ou se os EUA serão derrotados, e a China passará a dar as cartas.

As regras atuais de livre comércio foram criadas sob a liderança americana, ainda no contexto da guerra fria: o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), precursor da OMC, foi assinado em 1947. A partir dos anos 80, a China foi aprendendo a jogar de acordo com as regras, até ingressar na OMC em 2001. 

Um pouco como a Seleção Brasileira se tornou melhor do que a da Inglaterra no futebol, a China se tornou um craque do livre comércio, mesmo não tendo participado de sua invenção. Hoje, é a maior potência comercial do mundo. Os EUA então deixaram de gostar do jogo, e decidiram mudar suas regras. Ou melhor, no caso de Trump, jogar sem regras mesmo. 

É evidente que a China tem dado muitas caneladas: violação de patentes, dumping, subsídios e outros tipos de apoio estatal que criam vantagens competitivas artificiais. Mas aí está — ou estava — a OMC para apitar as faltas e mostrar o cartão: salvaguardas, medidas antidumping e anti-subsídios.

Embora ainda se beneficie do status de nação em desenvolvimento, o que parece incongruente, dada sua condição de potência comercial, a China vem se enquadrando. O acordo que trouxe uma trégua à guerra comercial com os EUA incluiu o respeito à propriedade intelectual. 

A China saiu de um superávit na conta externa de 10,3% do PIB no terceiro trimestre de 2017 para 0,4% no mesmo período de 2018. A Alemanha, em contraste, o maior exportador em valor agregado, mantém superávit de 8%.

”Um cidadão alemão exporta em média o dobro de um chinês”, observou o economista francês Uri Dadush, consultor do Banco Mundial. “O yuan se apreciou cerca de 40% em termos reais em relação ao euro nos últimos dez anos”, calcula ele. 

“É muito difícil caracterizar hoje a China como o grande predador no mercado internacional”, ponderou Dadush. “É uma grande importadora para muitos países em desenvolvimento.”

Com a OMC enfraquecida, o livre comércio passa a depender mais dos arranjos regionais. Por isso, para Dadush, “quem tem que se preocupar é o Brasil, que tem poucos acordos de livre comércio, e o Mercosul não funciona”. O fato de a OMC ser dirigida por um brasileiro, Roberto Azevêdo, parece que não servirá mais de consolo.

Da esq. p/ a dir.: Renato Flôres, Mathias Fekl (ex-ministro do Comércio Exterior da França), Uri Dadush e o moderador John Yearwood

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