Levante sul-americano

Simpatizantes de Evo entram em confronto com opositores

Tantas manifestações na América do Sul têm deixado o governo brasileiro aflito: as reformas econômicas que ele conduz, há muito tempo necessárias, causam reações de grupos com capacidade de mobilização. 

Mas afinal, qual a anatomia dos grandes movimentos populares, e quais as condições de possibilidade de sua contaminação para outros países? Com base nas minhas coberturas da Primavera Árabe e de muitos outros levantes, incluindo os da América Latina, proponho aqui alguns aprendizados.

A primeira condição é uma longa história de ressentimentos armazenados. O ressentimento é a combinação de tristeza e raiva. Ele é diretamente proporcional ao montante de expectativas frustradas.

Na Primavera Árabe, isso se acumulou por 59 anos no Egito, 55 na Tunísia, 42 na Líbia e 41 na Síria, a contar do início de cada ditadura militar.

Na América do Sul, os processos são mais recentes. Na Bolívia, o cronômetro foi zerado em 2006, com a chegada de Evo Morales à presidência. 

No Chile, democrático desde 1990, os eleitores vêm alternando entre Michelle Bachelet, de centro-esquerda, e Sebastián Piñera, de centro-direita, há mais de 13 anos. A percepção dos que foram às ruas é a de que seus dois maiores problemas não se resolveram: o custo do ensino superior, para os jovens, e a dificuldade de garantir aposentadoria digna, para os mais velhos.

Faz 25 anos que alguém um pouco mais à esquerda não governa a Colômbia. O último foi Cesar Gaviria, (1990-94). No ano passado, assumiu um presidente assumidamente de direita, Iván Duque. Essa falta de alternância ideológica e os problemas do dia a dia estão levando muitos colombianos às ruas.

Como se vê, a natureza das frustrações é diferente, mas em todos os casos ela conduz a uma sensação de falta de saída. Se você já viu um animal acuado, sabe como ele reage: avançando contra quem está na frente. 

No Brasil, a estabilização da inflação nos anos 90, com seus ganhos reais no poder aquisitivo; as privatizações, que tornaram a telefonia celular acessível; a expansão do Bolsa Família, o aumento dos benefícios previdenciários e a situação de quase pleno emprego com carteira assinada formam um ciclo encerrado em 2011. De lá para cá, as más notícias vêm se avolumando. 

A primeira resposta foram as manifestações de 2013, dissipadas pela violência dos black blocks e da polícia, que fizeram a classe média voltar para casa. Ela retornou às ruas em 2015, no impeachment de Dilma Rousseff. 

Quatro anos não são um tempo longo, nem para os padrões sul-americanos. Mas é preciso multiplicá-los pela gravidade da crise, expressa nesse número: 12,4 milhões de desempregados (11,6%). Então, acho que podemos dar essa condição como atendida.

São necessárias lideranças para um movimento popular tomar corpo? Não. Tanto a Primavera Árabe quanto o Brasil de 2013 quanto as últimas manifestações na América do Sul foram espontâneas (no impeachment de Dilma, lideranças surgidas em 2013 tiveram um papel). Então o atual descrédito da esquerda não serve de alento para o governo.

Por último, um país pode contaminar o outro? Se houver suficiente ressentimento armazenado, sim. Isso ficou claro tanto nos países árabes quanto nos nossos vizinhos. É o efeito-demonstração. As pessoas veem os protestos em outros países e se perguntam: por que a gente não vai para a rua aqui também?

Reformas e ajustes como os que o Brasil está fazendo são muitas vezes percebidos como perdas de direitos. Os ganhos para a maioria da população demoram a aparecer. 

Grupos que estão perdendo seus privilégios, que são bem organizados e conseguem gritar alto, são capazes de desencadear um movimento, arrastando camadas da população que seriam beneficiadas pelas reformas, mas que não sabem disso. 

O governo precisa ter calma e clareza de objetivos.

Publicado no Estadão. Copyright: O Estado de S. Paulo. Todos os direitos reservados.

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