Poder perpétuo: a manobra de Putin

O presidente Vladimir Putin anunciou na quarta-feira, em seu discurso sobre o Estado da União, mudanças na Constituição e um referendo popular. Os detalhes não são conhecidos, mas os indícios são de que o presidente dará um jeito de continuar no poder depois de 2024, quando completa o segundo mandato consecutivo de seis anos.

O anúncio foi seguido da renúncia coletiva do primeiro-ministro Dimitri Medvedev e de seu gabinete. A Duma (Câmara dos Deputados) prontamente aprovou a nomeação de Mikhail Mishustin, o até desconhecido diretor da Receita Federal, para a chefia do governo. 

O presidente russo, Vladimir Putin, com o premiê Dimitri Medvedev Foto: Sputnik/Alexey Nikolsky/Kremlin via Reuters

O resultado da votação foi revelador do controle de Putin sobre o Parlamento: 383 votos a favor, 41 abstenções e nenhum voto contra.

Há informações de que o plano de Putin seria reforçar o poder do Conselho de Estado, e assumir sua presidência em 2024. Criado por Putin no seu primeiro ano de governo, em 2000, o Conselho é formado pelos governadores e os presidentes da Duma e do Senado. 

Seria, em termos políticos, uma espécie de reedição da era soviética, quando o poder estava concentrado no Soviete (“Conselho”, em russo) Supremo. Ou o poder poderia ser deslocado para o cargo de primeiro-ministro, como em 2008, quando Putin também havia cumprido dois mandatos consecutivos e trocou de lugar com Medvedev, que assumiu a presidência.

O formato final é irrelevante. Ficou claro que Putin não só não abrirá mão de seu poder, mas o continuará exercendo num cargo formal, com garantia constitucional. 

Os 20 anos do governo de Putin foram marcados por denúncias de corrupção e de assassinatos e prisões arbitrárias de seus adversários políticos. Um problema recorrente desse tipo de regime é que os seus líderes temem entregar o poder e ser submetidos à Justiça.

Eu cobri as eleições presidenciais russas de 2008 e 2018, e constatei que o poder de Putin se sustenta sobre um tripé: a real popularidade dele, a eliminação de qualquer oposição que o ameace e o controle sobre a mídia. 

Essa popularidade é baseada na associação que os russos fazem entre Putin e a estabilidade. Sobretudo os mais velhos trazem consigo o trauma da caótica transição dos anos 90, com seu empobrecimento abrupto e incertezas. Muitos russos acham, ainda, que Putin devolveu o prestígio internacional à Rússia depois do fim do império soviético.

Essa popularidade vem caindo, com a desaceleração da economia, causada, em parte, pelas sanções americanas e europeias em reação à anexação da Crimeia em 2014 e à interferência militar no Leste da Ucrânia. E pelos problemas de eficiência resultantes do sistema clientelista que domina as grandes empresas do complexo energético e militar, montado para reforçar o poder político do presidente.

Nas eleições para a Câmara Municipal de Moscou, no ano passado, foi proibida a inscrição de candidatos independentes para neutralizar o movimento do líder oposicionista Alexei Navalny. 

A estratégia de Navalny, de pedir votos para outros partidos que não a Rússia Unida de Putin, foi bem-sucedida. A bancada do governo encolheu de 38 para 25 cadeiras, enquanto os outros partidos elegeram 15 vereadores a mais do que em 2014. Putin não quer que isso se repita no ano que vem nas eleições para o Parlamento.

Com uma mudança constitucional que perpetue Putin no poder, a Rússia se aproximará do modelo da China, sua parceira na disputa por hegemonia com os Estados Unidos. Em 2018, Xi Jinping também mudou a Constituição para tornar o mandato de presidente ilimitado. O cargo é cerimonial, mas está associado ao de secretário-geral do Partido Comunista, no qual se concentra o poder.

O movimento de Putin consolida uma tendência mundial de buscar, sem disfarces, regimes alternativos à democracia, considerada por muitas pessoas um estorvo à eficiência do sistema.

Publicado no Estadão. Copyright: O Estado de S. Paulo. Todos os direitos reservados.

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