Vitória de Obrador e derrota para o Brasil? As decisões no México

Considerado no exterior como uma resposta populista a Trump, López Obrador foca nas demandas internas e na solidez econômica

EM CAMPANHA: em 13 anos como candidato, AMLO percorreu os 2.464 municípios mexicanos | Alan Ortega/ Reuters

Cidade do México — Mesmo depois da incrível façanha do 1 a 0 sobre a Alemanha — até porque depois dela veio o banho gelado sueco de 3 a 0 —, muitos mexicanos consideram que passar pelo Brasil nesta segunda-feira equivaleria a um milagre da Virgem Morena de Guadalupe, a padroeira nacional.

Neste domingo, em contrapartida, só um milagre tiraria a vitória do populista de esquerda Andrés Manuel López Obrador, líder do Movimento de Regeneração Nacional, que, por um notável golpe de marketing político, é conhecido pela sigla Morena, nome venerado pelos mexicanos.

É a terceira vez consecutiva que AMLO, como é conhecido, concorre à eleição presidencial. Os mandatos são de seis anos, sem reeleição. E não há segundo turno. Em 2006, sua derrota foi tão apertada, por 0,6%, que ele não a aceitou, e durante seis semanas seus seguidores, mobilizados pelos “movimentos sociais” e sindicatos, ocuparam o centro histórico da Cidade do México.

Em 2012, AMLO ficou bem mais longe de vencer, mas seguiu lutando — numa trajetória que lembra muito a de Luiz Inácio Lula da Silva. Dois anos depois, ele saiu do Partido da Revolução Democrática e fundou o Morena.

Junto com a sigla, adotou um discurso mais palatável. O líder anti-sistema que antes se recusava a fazer aliança com outros partidos costurou uma frente de esquerda. E conseguiu canalizar a imensa frustração dos mexicanos com os políticos tradicionais.

“Mesmo tendo administrado a Cidade do México (entre 2000 e 2005) e sendo um político profissional, AMLO está aproveitando a onda contrária aos partidos e políticos tradicionais, que varre o mundo, incluindo o Brasil”, disse a EXAME Marcelo Ortega, diretor-geral da Consulta Mitofsky, mais importante instituto de pesquisas do México.

Ortega, que faz as sondagens de intenção de voto para a rede Televisa, avalia que, ao contrário do que se pensa fora do México, a hostilidade de Donald Trump contra o país não beneficiou a candidatura de López Obrador, no sentido de levar os mexicanos a eleger um nacionalista para fazer frente a outro.

Essa é também a visão de outros analistas, como Raymundo Tenorio, diretor do Departamento de Economia do Instituto de Tecnologia e Educação Superior (TEC), na Cidade do México. “Nos últimos 18 anos, posso contar nos dedos de uma mão as vezes em que ele se ocupou de política externa em seus discursos”, assegurou Tenorio a EXAME.

“Ele não faz afirmações anti-imperialistas, ou que entrem em choque com os Estados Unidos”, observa o economista. “O máximo que disse foi que exigiria respeito, diante das ameaças de construir o muro na fronteira, e que seguiria negociando o Nafta (o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, que Trump ameaça romper).”

Com relação à América Latina, AMLO também mantém “um perfil muito baixo”, diz Tenorio. “Ele tem tido muito cuidado em não falar em reconstruir as relações com países como Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador (governados pela esquerda).”

Os analistas concordam que o foco dessas eleições, e de López Obrador, está nos problemas internos. E, na visão dos mexicanos, eles são muitos, como se vê pelo índice de aprovação do presidente Enrique Peña Nieto: entre 19% e 20%, segundo o Consulta; outras pesquisas falam em 12%. Isso é um recorde, explica Ortega, porque uma parte do eleitorado mexicano se mantém fiel aos partidos, aconteça o que acontecer. E o Partido Revolucionário Institucional (PRI), de Peña Nieto, que governou o México ininterruptamente entre 1929 e 2000, conta com uma capilaridade que faria inveja aos caciques do PMDB.

Peña Nieto se elegeu prometendo diminuir pela metade a criminalidade. Depois de uma queda, ela subiu novamente, e voltou ao patamar de 30.000 homicídios por ano. Embora a imprensa estrangeira fale mais dos crimes escabrosos, na disputa entre os cartéis do narcotráfico, o que tem maior peso eleitoral são os roubos de celulares e carros e assassinatos ocorridos nas cidades, explica Ortega.

O outro problema foi a corrupção. Assim como no Brasil, provavelmente ela não é tão mais volumosa do que no passado. Mas ela começou a aparecer mais. O caso mais emblemático é o da primeira-dama, a ex-atriz de novela Angelica Rivera. Conhecida pelo apelido de Gaivota, ela é acusada de ter adquirido uma casa de 7 milhões de dólares por meio de tráfico de influência: a mansão pertencia a um empresário com contratos com o governo de seu marido.

Mas, segundo Ortega, a grande pá de cal sobre o governo de Peña Nieto foi o chamado “gasolinazo”, o aumento abrupto de 20% no preço do combustível, no início de 2017. Ele foi provocado pela retirada de subsídios, para tornar o mercado mais atraente aos investimentos, depois que o governo conseguiu aprovar a quebra do monopólio da Pemex, a estatal do petróleo.

A alta não contaminou outros produtos, como se temia, mas foi suficiente para provocar a ira da população, com protestos e depredações de postos de gasolina. De novo, por causa da reversão de expectativas: Peña Nieto conseguiu aprovar a chamada “reforma energética” prometendo que o preço dos combustíveis ia baixar, com a entrada da concorrência e dos investimentos. Num primeiro momento, o efeito foi o contrário. “O problema de Peña Nieto é que as suas reformas terão efeitos positivos no longo prazo, mas provocam resistências no curto”, analisa Ortega.

O mesmo se pode dizer da outra grande reforma realizada pelo presidente: a da educação. Ela introduziu concursos públicos para professores, remuneração baseada no desempenho, estabelecimento de metas e controle por parte do governo central. Antes, professores vendiam ou passavam para seus filhos sua vaga quando se aposentavam; políticos usavam a rede pública de ensino como cabide de emprego; e os sindicatos também trocavam vagas por apoio político — ou por dinheiro, mesmo.

Pela reforma, os professores têm duas chances de passar em exames periódicos de avaliação. Depois de falhar nos dois primeiros, têm acesso a cursos de capacitação. No terceiro, são afastados para atividades administrativas ou demitidos.

López Obrador, cujo partido não tem um grande número de militantes, prometeu reverter essa reforma, e com isso conquistou o apoio dos sindicatos dos professores, que reúnem mais de um milhão de filiados. Ele também se colocou contra a quebra do monopólio da Pemex, mas ultimamente tem falado em rever apenas os contratos com suspeitas de corrupção.

“No último mês e meio, depois de um período de atritos, e da realização de reuniões com a cúpula do empresariado, os ânimos se acalmaram, e embora haja o temor da incerteza, não há a expectativa de que se vá fazer um mau trabalho”, disse a EXAME José Luis de la Cruz Gallegos, diretor-geral do Instituto para o Desenvolvimento Industrial e o Crescimento Econômico (Idic).

Entre o mercado e as urnas  

Ele aponta para a equipe econômica de AMLO como garantia de que seu governo não deverá se afastar do modelo adotado nos últimos 24 anos, que inclui o livre comércio, a independência do Banco Central, a tentativa crescente de ajuste das contas públicas, o estímulo à iniciativa privada e aos investimentos externos.

Carlos Urzua, apontado como futuro ministro da Fazenda, é graduado em matemática pela TEC, com mestrado e doutorado em economia pela Universidade Wisconsin. Foi professor em Princeton e Georgetown. “É um homem muito sofisticado”, atesta De la Cruz, que foi seu aluno no Colegio de México e até hoje mantém contato com ele.

Urzua atuou como secretário de Finanças da Cidade do México durante a primeira metade do mandato de AMLO, do qual é amigo há 20 anos. Em entrevista recente, o futuro ministro declarou: “Somos mais centristas do que Lula”. De la Cruz concorda: “Carlos não é de esquerda. É social-democrata”. Outros integrantes da equipe têm o mesmo perfil, com doutorados em Harvard. “É uma gente tecnicamente muito capacitada, que gera confiança”, afirma o diretor-geral do Idic.

Tenorio observa que o perfil de Urzua e de sua equipe não condiz com o discurso de campanha de AMLO. “Ele tem falado em voltar ao antigo modelo de ‘desenvolvimento estabilizador’, com tarifas alfandegárias para substituir importações e proteger a indústria nacional”, lamenta o economista.

“Uma coisa é o horizonte de expectativas do mercado, outra o discurso cheio de preconceitos com o qual AMLO conquistou o eleitorado”, continua Tenorio, citando a promessa de aposentadorias para os idosos que estão fora da economia formal e bolsas para os jovens desempregados se capacitarem e arranjarem empregos. “Isso fere a liberdade. E se os empresários não quiserem empregar aprendizes só porque o governo assim deseja?”

Outra promessa que pode ter custo elevado é a de descentralizar a administração, espalhando os ministérios (que no México se chamam secretarias, como nos EUA) pelos 32 Estados do país. Ele promete ainda muitas obras, sobretudo no sul, que se mantém mais pobre, já que o norte se industrializou com o livre comércio com os EUA.

Seja como for, os mexicanos querem mudança, e é isso o que AMLO encarna, explica Ortega. Os eleitores experimentaram o PAN (Partido da Ação Nacional), que governou entre 2000 e 2012, quebrando a hegemonia do PRI, e também se decepcionaram. “Se for para colocar lá alguém que rouba, que seja ao menos quem faz alguma coisa”, foi a conclusão dos eleitores, segundo o pesquisador. Isso os levou a reeleger o PRI de Peña Nieto em 2012.

Decepcionados mais uma vez, decidiram partir para algo mais radical. E que não deixa de ser conhecido: nesses 13 anos como “eterno candidato”, AMLO percorreu todos os 2.464 municípios mexicanos. Agora com 64 anos, adotou o slogan “amor y paz” (que lembra o “Lulinha paz e amor de 2002), para afastar a imagem de radical.

Ainda que se revele um lobo em pele de cordeiro, e queira reverter as reformas constitucionais, num primeiro momento AMLO não deverá ter apoio necessário para isso, prevê Ortega: para modificar a Constituição são necessários dois terços dos votos na Câmara e no Senado, e ainda por cima a ratificação de metade mais uma das 32 assembleias estaduais. Bem mais difícil que no Brasil, por exemplo.

Isso torna ainda mais admirável o feito de Peña Nieto, que incluiu também a reforma nas telecomunicações, que introduziu uma verdadeira concorrência entre as empresas e baixou os preços da telefonia e da internet. Nenhum outro presidente tinha conseguido fazer reformas constitucionais no México democrático, ou seja, a partir dos anos 80.

Pelas projeções de Ortega, a aliança liderada por AMLO terá maioria simples, e ficará muito longe de controlar 17 assembleias legislativas. Para conseguir a maioria de três quartos, ele teria de atrair partidos de alianças adversárias. O que não é impossível, mas vai requerer muita habilidade política, analisa Ortega. E dentro de três anos haverá novas eleições para a Câmara dos Deputados (para o Senado, só daqui a seis).

Quanto à Copa do Mundo, ela não teve uma influência direta sobre as eleições, afirma Alberto Aguirre, repórter do jornal El Economista. Mas beneficiou indiretamente a AMLO. “Desde que começou o torneio, as pessoas deixaram de dar atenção às campanhas. Isso afetou aos que estavam disputando o segundo lugar, enquanto AMLO continuava sem ser ameaçado em sua posição de liderança.”

De acordo com as pesquisas, AMLO tem entre 48% e 52% das intenções de votos. Isso é mais ou menos a soma dos votos dos outros três candidatos somados. José Antonio Meade, candidato do governo, em segundo lugar com 20% a 25%, chegou a declarar, depois da goleada da Suécia sobre o México, que “a derrota serve de aprendizagem”. Com certeza, pelo menos as derrotas de AMLO serviram.

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