Fila matinal de teatro é ponto de desabafo

Argentinos estão ansiosos para falar sobre o que tem lhes tirado o sono: seu dinheiro

María del Cármen e Roberto Salas, na fila do Teatro Nacional / Lourival Sant’Anna/ AE

BUENOS AIRES — São 8 horas da manhã de domingo e os argentinos já estão na fila. Não dos bancos, que ficarão fechados até quarta-feira, enquanto o governo ajeita a sua “saída ordenada” da conversibilidade. Mas do Teatro Nacional. E de graça – o que é mais importante, nesses dias em que o dinheiro está preso no “corralito”, como se chama a restrição dos saques a no máximo 250 pesos semanais.

Portando suas carteirinhas de associados a um clube cultural do jornal La Nación, que lhes dão direito a assistir peças, por 30 pesos ao ano, eles aguardam animadamente a abertura da bilheteria, para escolher seus assentos na pré-estréia do musical La Tanguera. O assunto predominante, claro, não é artes cênicas, mas aquele que tira o sono de todos os argentinos: o que acontecerá com o seu dinheiro.

Estão ansiosos para desabafar. E sua fúria tem um alvo muito bem definido:

os políticos, incluindo aqueles em cujas mãos está agora o seu destino. “Os que estão aí já roubaram tanto que não acreditamos em nada que eles venham a fazer”, diz Silvana, professora secundária de uma escola pública, que há meses recebe seu salário em “patacones”, como se chamam os tíquetes que o governo emite, em lugar de dinheiro.

“Esse novo presidente foi nosso governador”, conta Elena, uma aposentada de 62 anos, que mora em Wilde, na Província de Buenos Aires, governada por Eduardo Duhalde entre 1991 e 1999. “Roubou tudo, não sobrou nada.” María del Cármen Massetti lembra que não foi só ele. “Foram todos, sobretudo ‘el Carlitos'”, agita-se, referindo-se ao pequenino Carlos Menem, presidente de 1989 a 1999. “Foi ele que começou a vender tudo”, concorda o farmacêutico aposentado Roberto Salas.

“Deixaram a classe média arrebentada.” A privatização não veio acompanhada de uma reforma do Estado e da criação de um sistema de regulação. Os argentinos a associam à corrupção. E tremem ao pensar o que ocorrerá com as tarifas públicas, que, por contrato, estavam indexadas à inflação americana, embora houvesse deflação na Argentina.

“Teremos de ver quando nos devolverem os dólares”, preocupa-se María del Cármen, que se aposentou trabalhando numa compahia de seguros, e conta que tem mais de 100 mil pesos no banco. “Só estamos aqui porque é de graça”, Salas sorri, com um traço de amargura. “Não temos um peso no bolso. Não somos mais donos de nossos pesos.”

“O que estamos sentindo é terrível”, resume Olga Estela Bianco Midi. “Meteram a mão nos nossos bolsos, na nossa moral e na nossa dignidade.” Há quem, por força do ofício, identifique a origem dos males mais além de uma difusa roubalheira. “Chegamos a essa situação porque os políticos gastaram demais nos últimos 20 anos, fabricaram dinheiro e geraram inflação”, explica Mario Humberto Midi Paz, economista da Câmara da Indústria Curtidora de Couro. “Introduziram a conversibilidade para que os políticos parassem de emitir moeda. Daí, eles passaram a cobrir o déficit emitindo papéis no mercado interno e externo e a dívida explodiu.”

É raro os argentinos comuns olharem por esse ângulo. Cortes nos gastos públicos não são algo exatamente popular — que o diga o ex-ministro da Economia Ricardo López Murphy, que em março de 2001 apresentou um plano de reduzir esses gastos e não durou uma semana no cargo.

Nas raras vezes em que falam em cortes, os argentinos costumam se referir às mordomias. “Sabe quanto ganha um deputado em Formosa, a província mais pobre da Argentina?”, pergunta Midi. “Dezoito mil pesos. Além disso, cada um deles tem uma verba de representação de 80 mil. Quer outro exemplo? A Biblioteca do Congresso tem 2.800 funcionários. Se todos fossem trabalhar ao mesmo tempo, não caberiam lá.” Os argentinos têm um nome gracioso para esses funcionários que só comparecem para receber os salários: nhoques.

Talvez pela primeira vez em sua história, os argentinos estão invejando os brasileiros. “Só tem uma coisa em que estamos melhor: na Copa do Mundo”, provoca Midi. “Não, tem outra coisa”, corrige o jornalista aposentado José Gabriel Martínez. “Agora, temos carnaval nas ruas todos os dias: o panelaço.” 

 

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