As fronteiras móveis do urbano e do rural

Os conceitos de rural e urbano no Brasil imploram por uma revisão, sob pena de se desconectarem da realidade.

  

Gente morando no campo e trabalhando na cidade grande, gente trabalhando no campo e morando na cidade…

Lugarejos rurais tratados como cidades e atividades ‘urbanas’ exercidas no campo…

Os conceitos de rural e urbano no Brasil imploram por uma revisão, sob pena de se desconectarem da realidade. E não é só uma questão de nomenclatura. Quando o governo confunde urbano e rural, erra nas prioridades e o dinheiro não vai para onde devia. A imagem que o País faz de si mesmo é distorcida, suas potencialidades passam despercebidas e seus esforços são desperdiçados. Algumas histórias contadas aqui sugerem para onde o campo e a cidade estão indo – e para onde ainda podem ir.

 

SALESÓPOLIS – Seu Otávio abre a porta de ferro e a luz que entra na antiga fábrica de fogos de artifícios revela um mundo de figuras que ele talhou na madeira. Nascido há 63 anos na pequena Gandu, na zona cacaueira, Otávio Barros de Souza era lenhador até dez anos atrás. Percorreu a Bahia, Espírito Santo, Minas, São Paulo e até Rondônia cortando árvore.

Deixou de ser lenhador e virou artista no dia em que olhou para uma raiz no chão e viu um bicho. “Tirei de lá um tamanduá.”

Nas noites que se seguiram, seu Otávio pegou o costume de levar para casa pedaços de madeira para praticar. “Fazia e jogava fora, fazia e jogava fora”, conta ele, a voz límpida tingida de sotaque baiano. Quando já estava avançado em seu autodidatismo, alguém lhe deu uma dica: mostrar as peças à Superintendência de Trabalho Artesanal nas Comunidades, em São Paulo, ligada à Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho. “Foi uma beleza, acharam um absurdo”, sorri sem falsa modéstia.

Hoje em dia, seu Otávio participa de exposições e chega a vender 3 mil peças em São Paulo. Também vende na porta da oficina, na beira de uma rua de terra na saída de Salesópolis para Santa Branca, para moradores de São Paulo e de outras cidades que vêm passear no Vale do Tietê. O ofício rende R$ 1 mil por mês e o artesão vai se mudar agora do barraco de pau-a-pique onde mora com a mulher e quatro filhos para a fábrica abandonada que a prefeitura de Salesópolis lhe cedeu.

A trajetória de seu Otávio, de um ofício rural primitivo para uma atividade mais prazerosa, rentável e ecologicamente sustentável, sintetiza um pouco o que está acontecendo – ou precisa acontecer – nos Vales do Tietê e do Paraíba e em muitos outros cantos do País.

No início dos anos 70, Salesópolis – estrategicamente localizada a 100 quilômetros de São Paulo, 70 do litoral em Caraguatatuba e 54 de São José dos Campos, acalentava o sonho lúgubre de se desenvolver em pólo industrial.

A utopia de fumaça se dissipou em 1976, quando entrou em vigor a lei de proteção de mananciais, proibindo – ou dificultando demais – a instalação de indústrias ali.

O eucalipto firmou-se como boom. As fábricas de papel da Suzano e da Votorantim distribuíram mudas e a promessa de comprar o que os agricultores conseguissem plantar. A mata atlântica deu lugar ao eucalipto, o entorno das nascentes foi desmatado e a lei de proteção aos mananciais começou com um tiro no pé.

Reinvenção – Essa fase passou. Até para as empresas obterem seus certificados de qualidade, e por vigilância do poder público, o eucalipto está sendo plantado de forma mais racional. Mas já não é o maná dos agricultores: as empresas ampliaram as plantações em suas propriedades, de áreas planas e cultivos mecanizados, que lhes dão maior rendimento e melhor qualidade.

Desprovidos da mina de ouro, os moradores do Vale do Tietê – onde o rio nasce, irreconhecivelmente limpo – estão tendo de ser inventivos. É aí que entra a história de seu Otávio e de outros 15 artesãos que, a partir deste domingo, vão vender mel, pães, doces e figuras de papel machê, madeira e couro na nova feira de artesanato da praça de Salesópolis, no leste da região metropolitana de São Paulo. Do extrativismo primitivo para a criação de produtos, ainda que artesanais, eles estão transpondo a fronteira do empobrecimento para sua inclusão no mercado, mas também do que era tradicionalmente entendido como “rural” para o que vem com o seu desenvolvimento.

Mais emblemático dessa tendência é o crescimento dos serviços. Nos últimos quatro anos, quadruplicou de dois para oito o número de pousadas em Guararema, no Vale do Paraíba, também dentro da região metropolitana de São Paulo.

A Fazenda da Estiva, no município de Guararema, existe pelo menos desde o século 17. O pé direito de mais de 5 metros e o piso de lajota testemunham sua função original: armazém na rota dos bandeirantes, construído por volta de 1680. O engenheiro Jordão Vecchiatti comprou a área de 100 hectares em torno da sede em 1963. Na época, o professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo explicou: “Agora tenho para onde ir, se os comunistas tomarem conta do Brasil.” Hoje com 90 anos, ele não quer sair de Santo André, na Grande São Paulo, onde ainda trabalha em sua fundição.

Já a filha, Maria Clara, deixou há dez anos seu apartamento no bairro de Santa Cecília, na conturbada região central de São Paulo, e o emprego de secretária de um escritório francês de importação de folha de flandres, e veio montar uma pousada na estância: “Na terceira vez que cheguei perto do meu carro e estavam tentando arrombá-lo, eu disse: ‘Vou embora de São Paulo.’ ” Hoje, Maria Clara não consegue se imaginar morando de novo na cidade grande.

Diferencial – A pousada oferece aulas de equitação, piscina, quadra de tênis e campo de futebol, e cresce conforme o dinheiro vai entrando. Os quatro chalés de hoje deverão ser seis em julho, para quando está previsto um novo restaurante também. A diária de R$ 60 dá direito a café da manhã, almoço e jantar deliciosamente caseiros, preparados pela própria Maria Clara. “Meu grande diferencial é receber as pessoas como se fosse em minha casa.”

Mas é, também, entender como alguém da cidade grande quer ser atendido. Os consumidores buscam no campo aquilo que não encontram na cidade grande: paisagem, tranqüilidade, ar puro e diversões ligadas à natureza. Mas querem, também, que isso venha na forma de um produto, com acomodações adequadas e informações sobre o lugar. Para isso, claro, é preciso antes conhecer e valorizar a história e a natureza.

“Os municípios têm que ter em mente, ao autorizar a instalação de uma fábrica poluidora, que a grande vantagem comparativa do rural é o turismo ecológico”, adverte José Eli da Veiga, secretário-executivo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário. “Ganham algo hoje, mas perdem para o resto do século.” É fortalecendo algumas de suas características que a zona rural se desenvolve, diz José Eli, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP.

José Graziano da Silva, do Núcleo de Economia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas, tem uma visão um pouco diferente: “Acho que não existe mais um desenvolvimento rural separado do urbano. O desenvolvimento tem que ocorrer na região toda, impulsionado pelo urbano.”

De tudo um pouco – Outro elemento crucial do novo desenvolvimento rural, segundo José Eli, é a diversificação. O irmão de Maria Clara, Fernando, cria gado de corte na fazenda, de onde vêm os ingredientes das refeições servidas na pousada. “É preciso fazer um pouco de tudo”, receita Maria Clara.

As histórias dos moradores dos Vales do Tietê e do Paraíba desafiam visões sedimentadas no Brasil, como a do êxodo rural. Assim como Maria Clara, Durval Prado de Oliveira, fabricante de queijo de Guararema, também se mudou da cidade para o campo. Ele fazia manutenção de máquinas na fábrica da Melhoramentos, em Mogi das Cruzes. Durval aposentou-se aos 44 anos, com o benefício da insalubridade, mudou-se para uma chácara no município de Guararema e ingressou no ofício do sogro, que há 27 anos faz queijo na região.

“Não tem vida melhor que esta”, garante Durval, olhando para a mata que se estende da porta de sua mercearia, no fundo da casa. Ele faz 30 quilos de queijo por dia, do tipo Minas, nozinho, parmesão e cobocó (um queijo prato mole) e vende para 15 restaurantes de São José dos Campos, Jacareí, Guararema, Mogi e Suzano.

Êxodo – Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população urbana saltou de 32%, em 1940, para 78%, em 1996. O problema, diz José Eli, é que o IBGE trabalha com conceitos errados de rural e urbano. Muito do movimento medido pelo IBGE é, na verdade, de produtores que obtêm uma forma de transporte e vão morar na sede do município, onde usufruem de mais conforto, e continuam trabalhando na sua terra. É o caso de metade dos agricultores paulistas e goianos.

Convicto de que essa gente virou urbana, os governos federal e estaduais repassam verbas, via Fundo de Participação dos Municípios, que entram no caixa único das prefeituras e são empregadas em coisas como pavimentação e iluminação pública, quando o que as pessoas podem estar precisando é de crédito e assistência agrícola.

Assim como há gente morando na cidade e trabalhando no campo, há gente morando no campo e trabalhando na cidade. Guararema tem dois condomínios grandes. Algo como dois terços de seus moradores trabalham em São Paulo. A cidade está a 45 minutos da Marginal do Tietê. Daí em diante, o tempo depende da conjunção fatal entre horário e sorte. Mas, cada vez mais, uma conexão com a Internet pode substituir a estrada.

Densidade – Além disso, o que no Brasil se está chamando de cidade são, em 70% dos casos, municípios com densidade demográfica inferior a 40 habitantes por quilômetro quadrado. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) considera urbana uma localidade com mais de 150 habitantes por km2. Só 411 dos 5.507 municípios brasileiros atendem ao quesito. Guararema tem 80 habitantes por km2 e Salesópolis, 33. José Eli estima que a população efetivamente urbana do Brasil não chegue a 60%.

Graziano chega a um número parecido por outra conta: pelo censo de 1991, 16,6% da população total morava em municípios de menos de 20 mil habitantes, um dos parâmetros para definir o número mínimo de habitantes de um aglomerado urbano. Com isso, os 21% de população considerada rural pode ser elevado para quase 40%. “Isso relativizaria em muito a forte tendência à urbanização da nossa população”, escreveu o especialista, em seu livro O Novo Rural Brasileiro.

Ao apelidar de urbano o que é, em grande parte, rural, o IBGE está cumprindo a lei em vigor, editada em 1938, quando o Estado Novo se preparava para realizar o censo de 1940. Por ela, são as Câmaras Municipais que determinam o perímetro urbano do município. O que ficar de fora é rural. Muito pouco costuma ficar de fora. Interesses políticos locais prevalecem sobre critérios técnicos.

A discussão complica quando se quer definir o que, afinal, é rural, e o que é urbano. A associação convencional entre a atividade agropecuária e a zona rural, aceita pelo IBGE, é rejeitada por José Eli e Graziano, para quem a busca de renda via diversificação leva a população a se dedicar a um leque grande de produtos e serviços que eles chamam de pluriatividade.

Quanto mais o rural se desenvolve, menos agropecuário parece tornar-se:

segundo a OCDE, 36% dos americanos moravam em 1996 na zona rural e apenas 7% dos domicílios do país viviam da atividade agrícola. Por critérios semelhantes, a população rural do Brasil soma 52 milhões (um terço do total). Desses, 25 ou 26 milhões formam a população rural economicamente ativa e 20 milhões se dedicam à agropecuária – cada vez mais combinando-a com outras atividades.

A chefe do Departamento de Geografia do IBGE, Maria Helena Palmer Lima, diz que a dissociação entre o rural e o agropecuário pode ser válida para o interior de São Paulo, mas não para o resto do País. Entretanto, segundo dados citados no estudo O Brasil rural precisa de uma estratégia de desenvolvimento, coordenado por José Eli, 22% da renda das famílias rurais nordestinas vem de outras atividades que não a agropecuária, que por sua vez responde ainda por 58,6%; benefícios sociais, como previdência, respondem por outros 19,3%. No Sudeste, as atividades externas à agropecuária já perfazem 28,9% da renda.

Karin Vecchiatti, pesquisadora da equipe de José Eli, dá o exemplo de Valente, na região central da Bahia. Inicialmente, os produtores apenas cultivavam sisal. Construíram uma batedeira, que torna a fibra mais mole e permite vendê-la mais caro. Depois, montaram uma fábrica de tapete e carpete de sisal. A associação dos pequenos agricultores abriu uma escola rural, um supermercado e uma fábrica de sapatos de couro de bode e parte da receita foi investida em eletrificação rural por energia solar. Formou-se uma rede de atividades não-agrícolas, num cenário que é, para todos os efeitos práticos, rural.

De ponta – Mais antigas que o eucalipto nos Vales do Tietê e do Paraíba são as hortaliças que abastecem São Paulo, cultivadas principalmente por descendentes de imigrantes japoneses. Essa atividade sempre foi muito mais dinâmica que a agricultura tradicional. O cultivo hoje é altamente mecanizado e a técnica, aprimorada.

Sobre esse patamar, Takundo Kusakabe deu um salto há 25 anos. Adaptando técnicas japonesas às condições brasileiras, sua Flora Kusakabe foi uma das que criaram um novo mercado no Brasil: o de begônias. Hoje, ele e os filhos têm 50 estufas, com alguma coisa como 30 mil vasos de begônias, e empregam 30 pessoas. Só para a Floranet, que os vende pela Internet, inclusive para a Argentina, Kusakabe fornece 2.500 desses vasos por semana.

Kusakabe poderia ter-se contentado com a horticultura e seu Otávio, com o ofício de lenhador. Mas preferiram ir além. O campo guarda muitas histórias como essas. 


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