Brasileiros vão às urnas em busca de mudança

Os efeitos do Plano Real sobre a renda e a memória já se dissiparam Lula representa mudança e continuidade e ocupa o espaço de Serra e os pobres e de baixa instrução agora também votam no candidato do PT

 

Os brasileiros vão hoje às urnas em busca de mudanças para o País. Os efeitos benéficos do Plano Real já se dissiparam, tanto no poder aquisitivo como na memória de muitos eleitores. Não predomina o juízo de que os serviços públicos pioraram. Mas há forte sentimento de que a pobreza, o desemprego e a violência atingiram níveis intoleráveis.

Para mais de um terço dos brasileiros, os serviços de saúde e educação melhoraram nos últimos seis meses, segundo pesquisa do Instituto Sensus para a Confederação Nacional do Transporte, feita entre dias 27 e 29. Outro terço acha que pioraram e pouco menos disso, que ficou igual. O resultado segue o padrão observado há pelo menos um ano. Já 74% acham que a pobreza piorou, e 89% pensam isso em relação à violência.

“A pobreza, articulada com a violência, são os grandes impulsionadores da idéia de mudança”, analisa Fátima Pacheco Jordão, consultora de pesquisas do Grupo Estado. “Enquanto os indicadores de bem-estar social são razoáveis, gerando uma acomodação positiva com certas realidades, há um inconformismo muito grande, que se exprime em frases do tipo ‘um Brasil assim não se sustenta’ ou ‘um dia essa bomba explode’.”

Nos últimos seis meses, a renda de um terço dos entrevistados diminuiu, a de 53% continua igual e a de 13% aumentou. Mas o poder aquisitivo da população já está 10% abaixo da linha de 1993, antes da introdução do Real, segundo Ricardo Guedes, diretor do Sensus. Nas eleições de 1994, ela estava 40% acima do ano anterior e nas de 1998, 10%. “O efeito (eleitoral) do Real foi diminuindo, como conquista já incorporada”, diz Guedes. “Agora, o eleitor quer segurança, renda e emprego.”

Guedes faz a seguinte conta: a população economicamente ativa (PEA) representa 55% do eleitorado (o restante são donas de casa, estudantes, etc.). Desses, 49% estão trabalhando na economia formal ou informal e 6%, desempregados. Outros 6% procuram emprego pela primeira vez ou estão desempregados há mais de um ano e portanto excluídos da PEA, pelo critério do IBGE. A soma dos considerados desempregados e dos que gostariam de estar empregados, mas não se encaixam nesse critério é de 12%. Sobre a parcela dos 61% que estão e dos que gostariam de estar empregados, isso representa um quinto de eleitores. “É muita coisa”, conclui o cientista político.

A chave desta eleição está no balanço entre alguma continuidade e muita mudança. O esforço dos eleitores tem sido identificar qual candidatos é capaz de criar empregos, prosperidade e segurança sem destruir o que foi feito de bom nos últimos anos, assegurando e ampliando conquistas nas áreas de inflação, saúde e educação, e de setores privatizados com êxito, como a telefonia.

Segundo pesquisa do Instituto Vox Populi, feita nos dias 28 e 29 para o Correio Braziliense, 37% dos entrevistados querem que o próximo presidente “mude todas as políticas do atual governo”; 33%, que “continue algumas e mude a maioria”; 22%, que “mude algumas e continue com a maioria”; e apenas 3%, que “continue com todas”.

Dos eleitores de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 45% querem mudanças gerais; 37%, alguma continuidade e muita mudança; 14%, alguma mudança e muita continuidade. E há até mesmo 2% que dizem querer que o novo presidente continue com todas as políticas.

No caso do tucano José Serra, como era de esperar, a correlação é inversa. Dos seus eleitores, 42% querem que o próximo presidente mude algumas e continue com a maioria das atuais políticas; 30%, que ele continue algumas e mude a maioria; 19%, que ele mude todas e 8%, que continue com todas.

Lula ocupa o espaço de Serra

Os números da pesquisa do Instituto Vox Populi sobre a expectativa de mudança do eleitorado refletem a hesitação de José Serra em se identificar com a continuidade e o êxito de Luiz Inácio Lula da Silva em representar a mudança – e até uma certa continuidade também. “Lula ocupa plenamente o seu território, o da mudança, que é o seu espaço real, de oposição, e o pólo essencial dessa eleição”, constata Fátima Pacheco Jordão. “Serra ocupa mal o espaço da pouca mudança. É ele que está mal plantado. Existe certa satisfação (do eleitorado) com a situação, mas não existe um candidato da situação.”

O entrecruzamento da expectativa dos eleitores com sua intenção de voto mostra que os que querem mudanças em todas as políticas do governo e se dizem eleitores de Lula são 19,35% do total de votantes. Ou seja, mais da metade da fatia de 37%. Nesse terreno que definitivamente não é o de Serra, os que pensam assim e votarão nele são apenas 3,42%. Na segunda maior fatia, a dos 33% que querem alguma continuidade e muita mudança, quase a metade – 15,91% de todos os votantes – são eleitores de Lula. Os eleitores de Serra nesse segmento representam 5,4% dos entrevistados.

O mais significativo, porém, é que a votação de Lula não deixa de ser expressiva entre eleitores que querem mais continuidade do que mudança. Dessa fatia de 22% do eleitorado, mais de um quarto – 6,02% do total – declara voto no petista. Esse eleitorado mais conservador não fornece a Serra uma margem grande sobre Lula. Os eleitores que querem que o próximo presidente “mude algumas e continue a maioria das políticas atuais” e ao mesmo tempo votarão no tucano são 7,56%.

Pesquisa do Ibope feita entre dias 28 e 30 para a Rede Globo mostra que Lula é o candidato de 56% dos eleitores que acham a administração do presidente Fernando Henrique Cardoso “ruim” ou “péssima”. Até aí, tudo bem. Só que o petista também é o preferido de 42% dos que a consideram regular e de 26% dos que a avaliam como “ótima” ou “boa”. Como a avaliação regular é feita por 40% dos eleitores, a negativa por 36% e a positiva por 22%, a posição de Lula é mais proveitosa.

Mas não é só isso. Serra é o candidato de apenas 39% dos eleitores que têm avaliação positiva do governo, de 19% dos que o consideram regular e de 8% dos que o acham ruim ou péssimo. Se ao menos tivesse mais votos dos que simpatizam com o presidente, teria margem melhor.

“Serra em nenhum momento se identificou com este governo, embora fosse percebido como sendo pertencente a ele”, observa Fátima. “Causou uma dupla perda: minguaram os indicadores positivos do presidente e os dele.” Para ela, a campanha de Serra é “inédita na história do marketing político brasileiro”. Sua relação com o governo ao qual pertencia resultou numa “ginástica muito difícil para a cultura política brasileira”.

Ciro Gomes (PPS) é um “peixe que morreu pela boca”, diz Fátima. Mas, mesmo que não sofresse de incontinência verbal, teria dificuldade em encontrar espaço. “Seria muito difícil para um candidato que propõe mudanças competir com Lula, embora não tão difícil competir com Serra, propondo mudanças moderadas. Foi por isso que Serra investiu com tudo contra Ciro.”

Além do mais, “a fragilidade política de Ciro foi percebida quando começou a adensar-se a possibilidade de aliança entre PT e PSDB (num eventual governo Lula ou Serra)”, observa Fátima. E saltava aos olhos a incongruência das alianças de Ciro, que incluem inimigos declarados como o socialista Roberto Freire e o coronel baiano Antonio Carlos Magalhães.

Os votos de Ciro começaram a se transferir, primeiro para Lula, depois para Anthony Garotinho (PSB), que não precisa de base partidária robusta, porque “tem 40% do eleitorado evangélico e o efeito-demonstração do Rio, que não é pouca coisa”, analisa Fátima.

No campo dos atributos pessoais, o resultado de Anthony Garotinho não é brilhante, a julgar por pesquisa do Instituto Vox Populi dos dias 15 e 16. Só duas qualidades lhe são atribuídas por mais da metade dos ouvidos: “trabalhador” (57%) e “decidido” (51%).

Ciro Gomes é elogiado por mais da metade em quatro quesitos: “trabalhador” e “decidido” (57%), “capacidade para governar” (55%) e “visão de futuro” (52%).

José Serra recebe oito atributos: “trabalhador” (61%), “capacidade” (58%) e “preparo para governar” (56%), “decidido” (55%), “sério” e “visão de futuro” (54%), “poderoso” e “realizador” (52%). Mas 56% acham que se “empenha para melhorar a situação dos mais ricos” e 40%, a dos “mais pobres”.

Mais da metade dos eleitores confere a Lula 15 atributos: “trabalhador” (74%), “briga pelos direitos do Brasil” (72%, comparados a 45% de Serra), “decidido” (71%), “empenho para melhorar a situação dos mais pobres” (69%), “sério” (68%), “visão de futuro” (67%), “ter a cara do Brasil” (66%) e “entender o problema da população” (63%), “capacidade” (64%) e “preparo para governar” (60%), “sincero” (63%), “trazer progresso e desenvolvimento” (62%), “confiável”, “honesto” e “realizador” (60%).

Os três problemas que mais afligem os entrevistados são o desemprego, a saúde e a segurança pública. Lula é visto pelo maior número de eleitores como alguém com preocupação e capacidade de combater o desemprego (71%) e melhorar o policiamento e a segurança (64%). Serra vence na saúde, mas por pequena margem: 67% consideram o ex-ministro preocupado e capaz de melhorá-la e 64% acham isso de Lula.

Lula inspira a confiança de um número maior de eleitores do que os outros três candidatos em dez outros itens. Só perde para Serra em relação à capacidade de conseguir apoio no Congresso (60% a 54%) e à preocupação com a situação dos empresários (56% a 49%).

“Lula tem (na visão dos eleitores) melhores qualidades do que as campanhas adversárias avaliaram”, resume Fátima Pacheco Jordão. “A crítica ao adversário precisa encontrar predisposição no eleitorado. Caso contrário, vira um tiro no pé.”

Pobres agora votam em Lula

O apoio a Lula tem outra característica: é praticamente homogêneo nas diversas camadas de renda e escolaridade. Isso quer dizer que o PT em geral e Lula em particular superaram a antiga rejeição entre os mais pobres e os menos instruídos.

Segundo o Ibope, na faixa de renda familiar até 1 salário mínimo, Lula tem 46% dos votos; de 1 a 2 mínimos, 50%; de 2 a 5, 47%; de 5 a 10, 51%; e mais de 10, 46%. Serra está em segundo lugar, com 22% entre os que ganham até 1 mínimo, de 1 a 2 e de 5 a 10; com 19% de 2 a 5 e 27% entre os que recebem mais de 10 salários mínimos.

No eleitorado de Lula continua uma preponderância dos homens (51%) sobre as mulheres (36%) e dos mais jovens (48% de 16 a 24 anos) sobre os mais velhos (38% dos entrevistados acima de 50 anos). Segundo Fátima, as reservas das mulheres em relação ao PT se devem à identificação do partido com o funcionalismo público e suas greves. “As mulheres, sobretudo de baixa renda, são mais ligadas aos serviços públicos, sabem quando a professora falta ou quando não há remédio no posto de saúde.” Serra tem 23% do voto feminino, Garotinho, 13%, e Ciro, 10%.

Em síntese, Lula caminhou em direção ao eleitorado, com sua recém-adquirida moderação. E o eleitorado caminhou em direção a ele, com avidez por mudanças sem rupturas. Hoje se conhecerá a extensão desse encontro.


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