É uma febre terçã

JUTAÍ (AM) – De cada três lâminas de sangue examinadas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Cujubim, duas têm o protozoário da malária. Quando o Estado visitou a comunidade do Pirarucu, a mais distante da reserva, no fim de julho, das 40 pessoas que estavam lá, 13 tinham malária. Entre janeiro e julho, quatro crianças morreram na comunidade.

Primeiro foi Liliane, com 1 ano e 16 dias de idade. “Na época, não tinha remédio”, recorda seu pai, Francisco Silva, de 28 anos. “Demos remédio caseiro, fizemos lavagem (intestinal), mas ela não agüentou.” Silva pensou em ir embora e nunca mais pisar no lugar. “Só que eu devo tanto que tive que ficar.” Sua dívida com a associação, por mercadorias que pegou a mais do que o látex que produziu, soma R$ 200.

Em fevereiro, Gabriel morreu gritando de dor, e não havia sequer calmante ou açúcar para dar a ele. “Ele tinha 4 anos, mas só o senhor vendo”, contou seu pai, José Ribamar de Castro, o Zé Galego. “Ele tinha o saber de uma pessoa adulta.” Zé Galego abandonou a casa onde o filho morreu, e foi viver com o sogro, Edvar Bezerra de Moura, de 54 anos, líder da comunidade.

Um mês depois, Edvar perdeu outro netinho, Mateus, de 2 anos. Ele tomou remédio para malária, mas morreu “provocando” (vomitando) sangue. A casa de Mateus foi queimada, com medo de que sua doença fosse contagiosa. Em julho, foi a vez de Ketlin, de 10 meses. “Só tinha complexo B”, lembra o pai dela, Francisco Ribeiro, de 20 anos.
Durante a doença de cada criança, Edvar passou rádio para o escritório da RDS na sede do município, mas lhe diziam que não havia nada o que fazer: a associação não tem voadeira (lancha com motor de popa), que faria o percurso da sede de Jutaí ao Pirarucu em dois dias.

De acordo com a médica Ana Angélica Portela, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, essas crianças podem ter morrido de malária grave. Mas pode ter sido também hepatite, dengue hemorrágica, meningite bacteriana ou mesmo uma arbovirose (doença transmitida por insetos e causada por vírus desconhecidos da floresta).

Desde que seus pais ou avós, a maioria vinda do Nordeste, desembarcaram dos vapores na primeira metade do século passado, os ribeirinhos do oeste do Amazonas acostumaram-se a viver isolados. Cada família instalou-se na sua “colocação”, em geral a um dia de remo da mais próxima.

Quando chegava a hora de casar os filhos, antes de inteirar 20 anos, os pais faziam como José Mendes de Aquino, o Zé Galo, fez com suas cinco meninas: casou-as com os cinco rapazes de João Santiago das Chagas, o João Branco, que vivia no Sacado da Esperança, a duas horas de rabeta (hoje em dia, quase todo mundo tem esse pequeno motor de 5,5 cavalos) de seu compadre.O isolamento, aqui, significa ser dono do próprio nariz.

 

Na criação das reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável, o primeiro passo tem sido juntar os ribeirinhos em comunidades, para viabilizar escola, saúde e a comercialização de seus produtos por sua associação, sem a intermediação dos regatões. Boa parte dos recursos empregados na criação da RDS Cujubim foi absorvida no trabalho de reunir as famílias em comunidades, disse José Maria Silva, vice-presidente para Ciência da Conservação Internacional (CI), com sede em Belém. A CI investiu US$ 280 mil no Cujubim, metade doada pela embaixada britânica em Brasília e a outra metade captada pela ONG junto a doadores individuais e a fundações nos EUA.

Maridos e mulheres muitas vezes ficam divididos quanto a aderir ou não às comunidades, observa Francisco de Assis Moreira, coordenador do escritório da RDS, em Jutaí. “A mãe quer ir para a comunidade para educar os filhos”, diz Assis. “O pai é o responsável por sustentar a casa e vê no filho um suporte. O chefe de família isolado fixa o filho isolado. Já a mãe vê que o marido sofre e espera futuro melhor para os filhos.”

Podem-se pressentir as tensões domésticas quando a vida em comunidade não atende às expectativas. No Cujubim, as três principais promessas – renda, educação e saúde – ainda não se cumpriram. Quando viviam isolados, os ribeirinhos também tinham essas doenças, e também morriam sem assistência. Mas eles se juntaram em comunidades com a expectativa de que a situação melhoraria. Pode ter piorado: os igarapés, onde eles viviam antes, têm menos mosquitos do que as comunidades, observa Assis.

“Aqui é muito embrejado”, disse Zé Galego. “No inverno, cava dois palmos de terra e encontra água. A gente acha que é por isso que aqui é muito doentio.” Das 15 casas, apenas 7 estavam habitadas no início de agosto. A comunidade – ou o que restou dela – pretende mudar-se mais para baixo no Rio Jutaí.

De qualquer maneira, a vida na comunidade pressuporia alguns cuidados. Há a termonebulização, ou “fumacê”, que é uma mistura de 99% de óleo diesel e 1% do inseticida cipermetrina 30, usada dentro e fora das casas. E a borrifação de alfacipermetrina, especialmente destinada ao anofelino, o mosquito hospedeiro dos protozoários da malária.

Nas aldeias da Terra Indígena do Rio Biá, a meio caminho entre a sede do município e a RDS Cujubim, a Fundação de Vigilância de Saúde (FVS, estadual), em parceria com a prefeitura de Jutaí, encarrega-se de fazer os procedimentos duas vezes por ano. Já os ribeirinhos do Cujubim há muito não têm o serviço. “Há mais de 15 anos que não vem pessoal da Funasa ou da Sucam”, diz Luís Teixeira de Oliveira, líder da comunidade São Francisco do Paraíso. “Às vezes fazemos, mas isso é obrigação do Estado”, defende-se o prefeito de Jutaí, Umberto Afonso Lesmar (PV).

A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas fez parceria com a fundação americana Malaria No More para distribuir mosquiteiros para serem colocados nas janelas, portas e redes das reservas do Estado. Segundo o secretário Virgílio Viana, a experiência foi bem-sucedida na África. A prefeitura treinou oito agentes de saúde das quatro comunidades e paga salário mínimo para quatro deles. A FVS deu dois microscópios para as comunidades nas duas extremidades da reserva: São Francisco do Paraíso, a três dias de rabeta da sede do município, e Pirarucu, a dez dias. Os agentes dessas duas comunidades deveriam examinar o sangue dos moradores das outras duas. A prefeitura prometeu, em dezembro, ao Pirarucu, voadeira com motor de 15 cavalos e gasolina para transportar os agentes e os doentes. A promessa não foi cumprida.

A escola também tem decepcionado os ribeirinhos. A prefeitura bancou o envio de quatro professores de nível superior para as quatro comunidades, por um salário que, com as gratificações, chega a R$ 1.900 – um valor quase exorbitante para o funcionalismo público de Jutaí. Os quatro começaram em agosto do ano passado, mas, em poucas semanas, três voltaram com malária para a sede do município. O quarto voltou porque sua mãe morreu.
“Freqüentei escola, mas não aprendi nada, porque o professor fica só três ou quatro dias e vai embora, parece que não estão acostumados com malária”, queixa-se Francisco Almeida das Chagas, de 29 anos. Um dos cinco rapazes que se casaram com as cinco moças, ele mora com Valdenice de Almeida, de 20 anos, com quem já tem dois filhos, na comunidade São Raimundo. “Resolvi vir morar na comunidade porque disseram que ia ter professor, escola para as crianças pequenas”, diz Chagas. “Até agora, nada de melhorar. Está cada vez pior.”

“Estou resolvido a botar os meninos para estudar em Jutaí, porque essa reserva que botaram aqui não está resolvendo”, diz José Vasconcelos Lima, o Zé Cigano, que herdou o apelido do pai, que morava numa colocação na beira do Lago Cigano. “Professor fica uns dias e vai embora.”

“Foi muito bom, nós gostemos (sic)”, elogia Teixeira, de 61 anos, o líder do Paraíso, que freqüentou as aulas no ano passado, mas não aprendeu a ler. “Só que é muito pouco tempo que ele vem palestrar. Não dá nem três meses.” No ano passado, o professor Antonio veio e, se ficou duas semanas, foi muito, diz Teixeira. “Deu malária nele, ficou aperreado, foi embora. Voltou, malária deu de novo, foi embora de novo.”

Mas na parede de madeira da casa de Teixeira há uma prova de que sua filha Marinete, de 19 anos, aprendeu alguma coisa. “Desejo um Filiz Natal para todos do Pariso (sic)”, ela escreveu, com lápis vermelho.
Além da doença, outro problema que dificulta a educação dos adultos é a falta de luz elétrica nas comunidades. Obriga os professores a só dar aulas de dia, quando os adultos estão trabalhando. A Funasa deu um gerador a diesel para o Pirarucu, para acender o microscópio. Mas a comunidade não tem os fios para instalá-lo. O prefeito prometeu providenciar. A incapacidade de ler dificulta ainda mais o tratamento dos ribeirinhos. “Às vezes, tem remédio aqui, mas a gente não sabe qual é, ninguém sabe ler”, disse Arlete, de 25 anos, filha de Teixeira. “Às vezes, a gente acerta, às vezes não.”

Arlete tem três filhos. Cilc, de 7 anos, e Ana Gleice, de 5, tiveram malária no ano passado. Em maio, quem pegou foi Nália, de 2 anos. As crianças foram para o hospital de Jutaí. Arlete tinha um quarto filho, João Paulo, mas ele morreu de malária em 2005, com 2 meses de idade, no mesmo hospital.

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