‘Haverá um equilíbrio entre o social e a defesa do País’

O novo ministro da Defesa garante que as Forças Armadas não se descuidarão de sua atividade-fim

 


No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, as Forças Armadas terão participação nos programas sociais, mas essas atividades continuarão sendo subsidiárias, sem prejuízo da defesa. “O essencial é que se mantenha um equilíbrio entre a função social e a atividade-fim, que é a defesa do País”, diz o novo ministro da Defesa, José Viegas Filho. Nesse equilíbrio, Viegas não vê espaço para atividades como o policiamento. “A Constituição define claramente o papel das Forças Armadas”, diz ele, e “não é apropriado” que elas assumam tarefas de polícia.

A nomeação de um diplomata para a Defesa foi recebida com apreensão no oficialato. No cenário das relações internacionais, o trabalho do diplomata é quase o oposto do dos militares. Um faz de tudo para evitar que haja guerra; o outro passa a vida se preparando para ela.

Filho de oficial do Exército, ex-aluno do Colégio Militar do Rio, Viegas, 60 anos, trabalha com temas de defesa há 12, quando se tornou subsecretário-geral para Planejamento Político do Itamaraty. Na época, negociou três tratados na área de Defesa. O ministro conheceu o presidente em 1987, quando Lula foi a Cuba e Viegas era ministro-conselheiro da embaixada do Brasil em Havana. Desde então, manteve-se em contato freqüente com Lula e com outras figuras importantes de seu círculo, mas nunca se filiou ao PT: “Acho a filiação partidária incompatível com a função de Estado.”

Recém-desembarcado de Moscou, onde serviu como embaixador durante um ano e dois meses, Viegas, que também chefiou as embaixadas em Copenhague e em Lima, falou ao Estado no dia 7, dois dias antes de tomar posse.

Estado – No novo governo, as Forças Armadas terão de se empenhar mais em programas sociais?

José Viegas Filho – Sim. Elas já têm um desempenho social importante, no que eles próprios chamam de atividades subsidiárias. Essas atividades, que naturalmente poderão ser incrementadas, têm que continuar sendo vistas como subsidiárias. Não podem ser executadas em prejuízo da função precípua das Forças Armadas, que é a de defender o País. Não podemos esquecer o papel de dissuasão, que é a base da nossa doutrina. Elas têm de estar bem aparelhadas e treinadas para isso. Havendo a necessidade, e certamente haverá, elas serão chamadas a ajudar não só o governo, mas a nação brasileira, a se fortalecer socialmente. O essencial é que se mantenha um equilíbrio entre a função social e a atividade-fim, que é a defesa do País.

Estado – Há uma demanda da sociedade para empregar as Forças Armadas nas atividades de polícia.

Viegas – Isso não é apropriado. A Constituição define claramente o papel das Forças Armadas e elas não podem atuar como polícia.

Estado – O sr. acha que as Forças Armadas brasileiras devem caminhar para uma profissionalização ao estilo americano ou francês?

Viegas – Em primeiro lugar, as Forças Armadas brasileiras são profissionais, compostas por pessoas inteiramente dedicadas, responsáveis e confiáveis. Uma outra coisa é se elas devem contratar exclusivamente soldados profissionais e não conscritos, recrutados pelo serviço militar obrigatório. Há duas razões para mantermos a tradição do serviço militar obrigatório: a primeira é que dessa maneira nós nos asseguramos de que as Forças Armadas representarão o mapa da sociedade brasileira como um todo. Você terá (proporcionalmente) tantos amazonenses, pernambucanos, gaúchos quanto são os habitantes de cada um desses Estados; tantos brancos, negros, mulatos e índios quanto os que há na nação brasileira. Se eles fossem exclusivamente profissionais, não haveria essa mesma representação étnica e social da nação como um todo. Isso não seria desejável. É importante que as Forças Armadas sejam representantes de nossa nacionalidade, como ela é. A segunda razão é que o serviço militar obrigatório representa uma possibilidade de ascensão social. Tanto que quase todos os nossos recrutas são voluntários: pessoas que querem prestar o serviço. Elas buscam e encontram nele um convívio sadio e orientações de uma vida mais regrada, hábitos de higiene, alimentação e vestimenta melhores. Uma das idéias que mais freqüentaram as nossas conversas nesse vestibular do novo governo é ampliar o alcance do serviço, tanto do ponto de vista da ascensão social dos jovens quanto em função do interesse de as Forças Armadas terem soldados melhor treinados.

Estado – Seria um aumento do contingente?

Viegas – Não. É desejável aumentá-lo, mas só faremos isso quando tivermos os recursos necessários. Estou falando de uma melhora qualitativa, que seria boa também para as Forças Armadas. Pode ser, e oxalá seja, também quantitativa. Não vamos aumentar os gastos. Com os recursos que já temos, e com convênios com outros ministérios, como os da Educação e da Saúde, poderemos oferecer instrução e atendimento mais completos. Não só para melhorar o treinamento, mas também para dar uma formação profissionalizante paralela. Isso significará não só uma elevação social para os jovens como corresponderá também a uma melhora da qualidade da tropa.

Estado – O orçamento da Defesa no ano que vem é de cerca de R$ 29 bilhões. Desses, tirando aposentadorias, pensões e salários, sobram cerca de R$ 5 bilhões para operações e investimentos. Já que não haverá profissionalização e, com ela, redução do efetivo, que diminuiria o gasto com salários, a solução dos problemas das Forças Armadas passa pelo problema da Previdência?

Viegas – Eu sei que a Previdência dos militares tem as suas peculiaridades com relação às da Previdência do setor público em geral. Mas ainda não tive tempo de me aprofundar nesse tema. Agora, quando eu disse que não vamos adotar o modelo de profissionalização com eliminação do serviço militar obrigatório, isso não quer dizer que não haja profissionalização das Forças Armadas. Ao contrário. Elas são altamente profissionais, desde os soldados até os seus chefes mais altos, têm divisões excelentes, com tropas altamente treinadas e especializadas, forças de resposta rápida e equipamentos sofisticados.

Estado – Com o Mercosul e a distensão no Sul, a Amazônia passou a ser o maior foco de preocupações. Só que ainda é muito tímida a presença. Dos cerca de 200 mil soldados do Exército, apenas 10% estão lá. O sr. acha que deve continuar a tendência de aumentar a presença no Norte?

Viegas – Essa tendência deve ser mantida. A Amazônia é uma região para a qual convergem as atenções das Forças Armadas. Lá estão as nossas fronteiras mais extensas e despovoadas. De maneira que é natural que haja uma intensificação da nossa presença.

Estado – O governo americano acaba de ampliar o espectro de ação do Plano Colômbia, do combate ao narcotráfico para a guerrilha. No briefing do Pentágono sobre essa decisão, dois generais disseram que os EUA agora esperam uma participação mais ativa do Brasil, Peru e Equador, “na luta da Amazônia Ocidental”. O Brasil deve assumir uma posição um pouco mais militarista na fronteira com a Colômbia?

Viegas – O Brasil não tem nenhuma intenção de participar na luta, nem tem o desejo de adotar uma postura militarista. Naturalmente o Brasil está atento ao que ocorre nas suas fronteiras. É uma região onde há instabilidades políticas e terei empenho pessoal no aumento de nossa presença lá.

Estado – Em caso de antecipação das eleições, de um governo amigo o Brasil poderá passar a ter um governo hostil na Venezuela, por causa do envio do carregamento de gasolina, que foi muito mal recebido pela oposição. O sr. assume com um quadro muito mais crítico na região?

Viegas – Naturalmente há um arco de instabilidade na região. E nós teremos que lidar com isso. É tradição da política externa brasileira não tomar partido nas questões internas de outros países. E é evidente que socorrer um país amigo num momento de necessidade não configura interferência nos seus assuntos internos.

Estado – Esse arco de instabilidade se amplia também com a situação do Iraque e da Coréia do Norte. O sr. vai herdar crises simultâneas…

Viegas – Mas nesses casos o envolvimento do Ministério da Defesa é muito menor. Ninguém espera que o Brasil venha a ter qualquer atuação militar nesses cenários.

Estado – O Brasil involuiu na produção de equipamentos militares, deixando de ser exportador. Só a Avibrás sobreviveu. Seria um bom momento, até em razão de todos esses conflitos, de voltar a ganhar dinheiro com armamento?

Viegas – Esse é um tema interessante. O mundo mudou muito. Quando nós desenvolvemos nossa indústria bélica, tínhamos uma economia fechada e uma forte interferência do Estado, que foi quem desenvolveu essas empresas. Hoje, a economia está globalizada e o envolvimento do Estado é bem menor. Mas não há dúvida de que existe um espaço para empresas brasileiras atuarem neste campo. Essa é uma das áreas que pretendo explorar. Devemos fazer um levantamento das oportunidades de negócios e promover convênios com a iniciativa privada, investindo na capacitação tecnológica, para voltar a produzir e exportar armas.

Estado – Segundo Clausevitz, a guerra é a continuação da política por outros meios. Como o sr. se sente saindo do campo da política e indo para o da guerra, e como o sr. está sendo recebido pelos militares?

Viegas – Muito bem recebido. Tenho uma relação de trabalho com os militares há 12 anos, desde quando era chefe da Subsecretaria Geral de Planejamento Político do Itamaraty. Na época, meu correlato no Exército era o general Gleuber Vieira (que acaba de deixar o comando do Exército). Nós discutíamos questões relativas ao planejamento estratégico do País. Depois disso, eu negociei pelo Brasil três tratados ligados à área da defesa e do desarmamento: a renegociação do Tratado de Tlatelolco, que proscreve as armas nucleares na América Latina (1992-93); a Convenção sobre Armas Excessivamente Destrutivas e a Convenção de Proscrição das Minas Antipessoas. Aliás, graças às gestões feitas pela nossa diplomacia, a América do Sul é a única região do mundo em que todos os países que a integram aderiram à Convenção e aboliram em conjunto essas armas particularmente nocivas.


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